CARTA AO MEU ‘FALSO SELF’ – Jon Menezes
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CARTA AO MEU ‘FALSO SELF’

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Quero ser ‘player’ tanto quanto tu; quero ter vez e voz nos assuntos mais cruciais concernentes à nossa vida, e nos menores também, aqueles que tendes a transformar em algo grandioso, como, por exemplo, tua profissão, teu desempenho, teu peso, tua aparência, o que os outros pensam de ti, se serás amado e aceito, e assim por diante..

 

Querido Antigo eu,

Resolvi escrever. Registrar. Pois esse é o modo que mais aprecias, talvez o único modo que realmente entendas. Pois és a versão da humanidade que se perpetua há milênios. Aquela que quer permanecer para sempre nos anais da história. Fulgurante, gloriosa. Te chamo ‘Antigo’, pois estás aí ao redor de mim e em mim há tanto tempo e tem se revestido de poder e concretude tão pretensamente grandes, que é como se não existisse mais nada a não ser a ti mesmo. Tua materialidade é teu trunfo, mas também tua fragilidade.

Queria dizer que isso é uma pena e lamentar ter acreditado na mentira escondida por trás desta verdade por longa data, mas a real é que esse seria um lamento inútil. Pois isto tudo – essa mescla de nós dois – era tão necessário, quanto inevitável, quanto ilusório, quanto fugaz, quanto prazeroso, quanto doloroso…

E pode parecer estranho endereçar uma carta a ti, como se tivesses sido esse tempo todo um anexo de mim, uma parte distinta, quando na verdade, na maior parcela do tempo dessa vida, tem sido o contrário. Reinaste praticamente sozinho, com ligeiras chances de que eu aparecesse de outro modo senão na forma selvagem de um grito, de um choro, de uma depressão, de um sintoma, de uma prece, ou de uma voz interior quase inaudível em meio aos barulhos desse lúgubre interior.

O fato é que, depois que entramos nessa fase da vida – que alguns chamam de sua segunda metade –, decidi ignorar os protocolos de inteligibilidade que por tanto tempo nos ladearam em tons quase absolutos, e a falar-te diretamente, a conversar contigo e a sussurrar no teu ouvido a seguinte mensagem: eu estou na área e não mais disposto a abandonar o posto.

Fui posto, é verdade, de escanteio por tantas vezes que já até perdi as contas. Mas esse tempo é passado. Ouso também chamar-te ‘Antigo’ não apenas pela idade de teu reinado, mas por entender que ele está em decadência, próximo do fim. Digo isso sem nenhuma intenção de extirpar tua existência, pois sei hoje que isso seria insanidade; a tua partida implicaria, fatalmente, também na minha. Ou na emergência do monstro, como brilhantemente mostrou Robert Louis Stevenson, em 1885, em seu clássico ‘O médico e o monstro’.

Permita-me um parêntesis, pois o exemplo desse livro pode ser uma rica ilustração para meu monólogo aqui – ou mesmo como parábola para o que Freud (2011) veio, em sua segunda tópica, chamar de relação entre o Id e o Ego. Nesse romance o personagem principal, o dr. Henry Jekyll, é descrito como um cientista sério e de reputação ilibada, que sempre fez de tudo para manter publicamente essa imagem de homem virtuoso, profissional excelente, uma pessoa de disposição alegre e entusiástica, e que assim faria a felicidade de muitos. Algo que ele, Jekyll, descrevia, porém, como seu pior defeito: o de ser pretensamente bom, e duro demais consigo mesmo. Para isso, ele precisava esconder suas pulsões e ignorar o “princípio do prazer”, e logo se viu no que chamou de “uma profunda duplicidade”: seu lado bom e o que ele julgava como “a parte inferior de si mesmo” estavam em guerra (ou o Id e o Ego estavam em guerra).

Tomado por um sentimento de vergonha dessa condição, ele teve um devaneio (ou foi tomado por uma ideação de natureza neurótica): por que não inventar uma fórmula que seja capaz de separar essas duas partes? Cito o personagem:

Se cada um, pensei, pudesse ocupar identidades distintas, a vida seria aliviada de tudo que é insuportável; o injusto seguiria seu caminho, livre das aspirações e do remorso de seu gêmeo mais digno; e o justo poderia percorrer com passos fortes e seguros seu caminho ascendente, praticando as boas ações que lhe dão prazer, não mais exposto à desgraça e à penitência causada por obra daquele mal extrínseco. A maldição da humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem sido amarrados juntos – que no ventre angustiado da consciência aqueles gêmeos opostos lutem continuamente. (Stevenson, 2015, p. 126)

Na pele de seu atormentado personagem, Stevenson nos faz imaginar um ser humano quase divino, porque puro e livre das “angústias e agruras dessa vida que são postas sobre nossos ombros”; um ser soberano em relação aos apetites mais primitivos do humano e, assim, livre da vergonha, do fardo e da culpa, para um fim nobre: fazer o bem e tão somente o bem! Ao colocar em prática seu plano, Jekyll ainda relata ter reconhecido que seu “corpo natural era apenas a aura e a radiância de alguns poderes” que compunham seu espírito, até então destronados pelos “elementos inferiores de sua alma” (Stevenson, 2015, p. 126).

Quem condenaria Jekyll por esse ato imponderado? Quem, nem que seja no inconsciente, não gostaria de poder ser humano, sem ter de carregar isso que ele chama de “maldição da humanidade”? O paradoxo stevensoniano, tal como o freudiano, no entanto, é o de que não é possível se livrar da maldição da humanidade sem que, com ela, seja abolida também a própria humanidade.

Minhas pretensões, por razão de nossa inseparabilidade caro self falso, são mais modestas. Quero ser ‘player’ tanto quanto tu; quero ter vez e voz nos assuntos mais cruciais concernentes à nossa vida, e nos menores também, aqueles que tendes a transformar em algo grandioso, como, por exemplo, tua profissão, teu desempenho, teu peso, tua aparência, o que os outros pensam de ti, se serás amado e aceito, e assim por diante. Eu sei que já deves estar protestando: “Mas isso é grande!”. Desculpe discordar veementemente de ti, mas não é.

Tua integridade vem na frente, bem como todas as pessoas que tanto dizes amar e a quem afirmas dedicar-te, quando, no fundo, dedicas-te apenas a ti mesmo. Tua alma, isto é, a nossa integração ou harmonia, vale mais que todos os aplausos que almejas, além daqueles todos nos quais não pudeste te deleitar por mais que alguns míseros segundos nos palcos da vida.

É por essas e por outras que, daqui para a frente, eu, o teu ‘verdadeiro self’*, decidi aparecer por aqui mais que o comum, ocupar um espaço a mim renegado por três décadas no mínimo, simplesmente para mostrar que a vida é mais e que podemos mais, quanto mais a minha voz for ouvida e os teus furtivos desejos colocados à prova. És importante, sem dúvida, tanto quanto és pobre sem minha presença. Lamento, mas daqui por diante, como disse o mestre Zagalo, tu terás “que me engolir”! E considere isso não uma ameaça, mas uma espécie de anúncio: da tua salvação e da minha libertação.

Nota

_________________________

*Essa noção em Donald Winnicott tem origem, segundo ele mesmo, numa releitura da divisão freudiana do aparelho psíquico em um id (ou isso) e um ego (ou eu). Sua releitura pretende notar uma divisão no ego entre um ‘verdadeiro’ e um ‘falso’ Self (ou Si-mesmo). Essa cisão, em si, não é patológica, pois, como acentua Winnicott (1983, p. 131), em um sujeito normal ou saudável, “o falso self é representado pela organização social polida e amável”, o que resulta para o eu em um lugar na sociedade, que não seria possível somente com o self verdadeiro. A função do falso self é, portanto, a de ocultar e proteger o verdadeiro. Ele faz isso por meio de uma associação ou identificação com um papel – como o “papel de mãe” ou o “papel de professor”, por exemplo. Num processo normal, essa couraça do falso eu serve ao interesse de criar “condições que tornem possível ao self verdadeiro emergir” (ibid.). Em processos patológicos, porém, a tendência do falso eu é tanto a de não se ver fora ou além daquele papel ou identificação típicos de sua natureza, acreditando ser esta a sua face real, quanto a de, por consequência, sufocar o verdadeiro self. Como corolário, enquanto o self verdadeiro se define pela espontaneidade, a criatividade e o “sentir-se real”, o falso self se vê privado dessas qualidades em função de sua inteira “submissão às exigências do ambiente” (Winnicott, 1983, p. 134). Em contrapartida, o verdadeiro self pode se manifestar numa espécie de radar (ou desconfiança) que todos podemos exercitar diante da realidade que vem até nós de forma editada (seja pelo nosso consciente, seja pelo dos outros). Esse é o radar que me impulsionou a escrever esta breve carta ao meu ‘falso self’. 

Referências bibliográficas 

FREUD, Sigmund. O eu e o id. In: Obras completas, vol. 16: o eu e o id; “Autobiografia” e outros textos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 13-74. 

STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro – O estranho caso do dr. Jekyll e o sr. Hyde. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

WINNICOTT, Donald W. Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro ‘self’ (1960). In: ________. Os ambientes e os processos de maturação. Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. Irineo C. S. Ortiz. Porto Alegre: Artmed, 1983, pp. 128-139. 


 

2 Comments

  1. Daniel Menara disse:

    Bravo! Simplesmente Bravo!
    Sei que o seu ‘antigo eu’ ou impostor se alegrará com a constatação de que fizeste um texto poderoso.
    Mas, que ele saiba que o grande vencedor aqui é o seu verdadeiro eu, renascendo das cinzas, não para a glória – mas para a integridade, para o cumprimento de seu caminho, para algo que há um tempo já esquecido foi chamado de Vida Eterna.

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