ESPIRITUALIDADE EM TRANSFORMAÇÃO: PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO – Jon Menezes
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ESPIRITUALIDADE EM TRANSFORMAÇÃO: PREFÁCIO À 2ª EDIÇÃO

QUEM É ESSE SER QUE LOGO SOU?
setembro 14, 2021
POR UMA FÉ QUE PODE FRAQUEJAR
setembro 14, 2021
 

Tendemos a dar à palavra “crise” uma conotação muito distorcida na vida real. Para muitos, “estar em crise” é sinônimo de perder totalmente o rumo, e isso obviamente é uma coisa ruim, dentro desta perspectiva. Ao pensar assim, olhamos para pessoas nesta condição de crise como quem olha do alto, da sacada de sua arrogância, como seres superiores fitando serezinhos inferiores. Afinal, não sabiam eles que aqueles caminhos ora trilhados levariam à presente condição? Não anteviram, como disse Elifaz (o “amigo” de Jó), que “os que cultivam a maldade e semeiam a opressão, isso também é o que colhem” (Jó 4.8, NVT)? Ou seja, se estão passando por momentos difíceis, se estão “comendo o pão que o diabo amassou”, é porque plantaram isso, porque mereceram. Sei o que isto parece. Parece-se com um juízo cruel, não é mesmo? Mas é assim que muitos – cristãos principalmente – leem e aplicam a mui antiga “lei da semeadura e da colheita”: de modo determinista e fatalista, ignorando as exceções, os acidentes, os paradoxos, o acaso e as contradições da vida.

É claro, há uma sabedoria nessa lei e que se perde nesta interpretação: a de que, em nossa curta vida debaixo do sol, estamos em um processo diário de construção de quem somos, no qual o tipo de vida que colhemos, a maior parte do tempo (embora nem sempre), advém do tipo de vida que plantamos e regamos. Como relembrou o apóstolo Paulo (trad. A Mensagem), “Quem planta egoísmo, ignorando a necessidade dos outros – e a Deus! –, colherá o mal. O resultado de sua vida será frutos inúteis. Mas aquele que planta conforme Deus, permitindo que o Espírito faça a obra de crescimento nele, terá uma colheita de vida verdadeira, vida eterna” (Gl 6.7-8). A imagem vem de uma cultura campesina, onde a subsistência diária é extraída do plantio e da colheita. Mas, mesmo nela, a sabedoria não engana: nem sempre colhemos exatamente aquilo que esperávamos, ou mesmo merecíamos, ao plantarmos. Pois todo plantio está sujeito às intempéries do tempo, da natureza e do acaso: perdas na colheita por pragas, infestação de plantas daninhas, secas ou geadas, e assim por diante. Pode ser que, por falha de planejamento, haja perdas na colheita; mas pode ser que se tenha feito tudo certo e, ainda assim, inadvertidamente, acidentes aconteçam. Inclusive com pessoas que não fizeram nada para merecer, como o personagem Jó, do Antigo Testamento. Por essa razão, é que a visão paulina desta lei se concentra menos nos ganhos e perdas materiais ou temporais, e mais nos ganhos e perdas da alma, na perspectiva da eternidade; na vida fecunda mais que na vida produtiva. Pois podemos produzir muito e, no entanto, fecundar pouco. Jesus, porém, sempre visou “frutos dignos de arrependimento” (Mt 3.8).

Mas eu falava de crise. E o fato é: crises acontecem a nós, seja porque plantamos ou provocamos, seja porque plantaram para nós, ou mesmo por pura contingência humana, por estarmos sujeitos a sofrer e a perder, ainda que fazendo o melhor possível para acertar o alvo. Apegar-se a determinismos teológicos não parece ser caminho mais saudável, por exemplo, do que assumir as responsabilidades que cabem em cada caso, e, no que resta, abraçar as contradições da vida como parte de nosso processo de amadurecimento. Como explica Sue Monk Kidd (2006, p. 87), a palavra “crise” é derivada de duas palavras gregas (krisis e krino) e, em geral, significa “uma separação”. Ou seja, nela há tanto uma urgência para deixar para trás – certas coisas, condições, estados de ser ou pessoas – o que precisa ser deixado, porque se perdeu ou não pode ser remediado, quanto uma oportunidade de aprendizado, recomeço, transformação. Desse modo, à pergunta: “O que é preciso aceitar e deixar para trás?”, seguem-se outras: “E agora? Que novas direções se apresentam diante de mim? Qual é o próximo passo correto a se tomar?”. Então, como afirma Kidd (2006, p. 88), eventualmente “você descobre que a experiência tempestuosa pode ser um agente te conduzindo a um lugar mais fundo no Reino, separando você da velha consciência e do grampo do ego”. Uma dolorosa, mas muito boa e transformadora separação neste caso.

Este livro, Espiritualidade em transformação – a que tenho o prazer de prefaciar sete anos depois de sua primeira edição –, nasceu de uma crise ou dura separação de um modo de crer e de existir de seu autor. Isso ficará evidente ao leitor e à leitora, principalmente, na medida que caminhar comigo na primeira parte do livro, a última que foi escrita, entre fins de 2014 e início de 2015, quando atravessei uma profunda crise existencial e de fé, da qual temi, por um instante, não me recuperar. Sabe esses momentos da vida em que você se sente tão, mas tão perdido, que começa inclusive a perder a noção de quem é você e de onde está seu verdadeiro lar? Ou, quem sabe, eu não havia perdido nada de essencial; só me dei conta de que ainda não havia encontrado meu “verdadeiro eu”. Ele havia ficado esquecido em algum lugar de minha infância, abafado por minha ânsia de ser uma pessoa que, na verdade, eu nunca consegui ser para agradar e impressionar sei lá a quem (meus pais? Minha família? Meus mentores? Meus alunos? Difícil de precisar a este ponto). Ao que parece tudo não passou de uma tentativa inglória de provar meu valor, de mostrar que eu merecia estar onde estava, sendo quem eu era, e fazendo o que fazia. Nada nunca, porém, foi suficiente. Meu eu esforçado e honesto não conseguia atingir o alto padrão de desempenho e excelência que estabeleci para mim mesmo. Tornei-me, desse modo, meu maior algoz; sem perceber, fui cativo de minhas próprias ilusões.

Então, uma mistura de acontecimentos interiores – angústia existencial, profundas dúvidas a respeito de minhas crenças e visões teológicas, além da depressão, que mais uma vez bateu à minha porta de maneira muito forte –, levaram-me bem próximo do abismo, fazendo-me crer que eu estava à ponto de enlouquecer, muito perto seguramente de uma exaustão e de um colapso emocional. Recordo-me bem de um domingo, em que levantei da cama para tomar café da manhã, mas depois voltei para a cama me arrastando, mal conseguindo ficar em pé, sem vontade alguma de fazer qualquer coisa. Imerso em pensamentos e em sentimentos, ali permaneci por um tempo. Minha esposa entrou no quarto, e comecei a olhar para ela e pensar se ela suportaria permanecer ao meu lado caso o pior acontecesse. Perguntei a ela: “Amor, me diz com toda sinceridade: se eu enlouquecer, você ainda irá me amar?”. Para minha surpresa, a resposta dela foi curta e direta: “Não!”. Ao notar minha perplexidade, ela prosseguiu dizendo que não o faria porque não havia se casado com um louco, que seu marido não era louco e que não precisava desse lugar de autocomiseração em que chafurdara. Então, ela começou a anunciar quem eu era, de seu ponto de vista. Não quero repetir aqui a lista de qualidades que ela me atribuiu, mas posso garantir que era tudo o que eu precisava ouvir naquele dia. Pois foi algo como: “Jonathan, é tempo de acordar, e recordar quem você é! Se você perdeu isso de vista, então me deixe pintar um quadro para você”. Não tanto o conteúdo, mas o teor do que ela disse, parece-se com uma poesia assinada por Jean Houston e Howard Jerome:

Você é mais do que pretende ser
Você é mais do que seus olhos podem ver
Você é mais do que toda a sua história
Olhe para dentro de si e encontrará
Há glória em seu interior
Venha se tornar o tipo de pessoa que deve ser...
Você é mais do que seus líderes dizem
Você é mais do que o modo como consegue seu pagamento
Você é mais do que parece ser hoje
Então abandone essa máscara de perdedor
Você é apto à tarefa
A questão que deve fazer é quem é você...
Você é mais que o que os pregadores proclamam
Você é mais, vamos, deixe seu espírito sair
Você é mais, sua alma não deveria duvidar
Levante-se, fique acordado
A cada novo respirar seu
O Deus dentro de você anseia por ser
Você é mais que células, sangue e ossos
Você é mais do que apenas o seu nome
Você é mais do que tudo o que possa possuir
Olhe ao seu redor, em todas as partes
Existe algo que compartilhamos
A mágica no ar é você!
Você é mais do que um gráfico estatístico
Você é mais do que a soma de todas as suas partes
Você é mais dentro de seu coração de corações
Você sabe que isso é verdade
Esse ser que é você, tem milagres a realizar
Acredite... (HOUSTON, 1998, p. 14)

Muitas vezes, precisamos de palavras como essas para que despertemos do sono e da letargia; para que saiamos da caverna de nossas ilusões; para que enxerguemos as armadilhas de nosso “falso-eu”, e escutemos de novo a voz de Deus. Sem dúvida, naquele domingo, minha esposa foi voz de Deus para mim, e me ajudou a passar, de novo, a ouvir a voz de Deus em mim, a voz que me chama de “amado” de eternidade em eternidade, antes mesmo que eu fosse, muito antes que eu realizasse qualquer feito. A voz que me afirma incondicionalmente sem qualquer necessidade de performances de minha parte. Naquele momento, porém, eu não sabia que precisava dessa voz, sequer me lembrava de quando havia sido encontrado por ela pela última vez. Mas ela estava em mim e, no meio daquela crise, habilitou-me a escrever, a compartilhar percepções, pensamentos, sentimentos e dúvidas, muitas dúvidas, que começavam a falar mais alto que minhas certezas. Foi assim que minha insegurança se moveu do plano existencial e pessoal para o terreno da fé.

Em princípio, foi um pouco assustador, confesso. Pois parecia que as dúvidas estavam ali para solapar minha fé. Até que me dei conta de que isso era impossível. Pois a fé é dom (não algo que obtive ou conquistei), e se encontra no “chão” fundamental de minha caminhada. Isto é, ela antecede e transcende qualquer forma ou concepção sobre ou de fé. E que a crise, portanto, havia confrontado diretamente as formas de expressão de minha fé – que melhor recebem o nome de “crenças” – e não a própria fé, que, sem que eu notasse, vinha sendo fortalecida por meio de encontros e diálogos inusitados – com Nietzsche, Van Gogh, com o ateísmo humanista e com vários poetas. Eu não me via mais habilitado a crer em determinados postulados sobre Deus, em que antes crera, sem ferir minha honestidade. Fui-me permitindo então duvidar deles, abandonar alguns, e manter apenas o que fui julgando essencial – o exercício de fé é um tremendo exercício de consciência, afinal, em que algumas fórmulas são jogadas fora e outras são de novo entesouradas. Como bem coloca Brian McLaren (2021, p. 92), “há uma diferença entre duvidar de Deus e duvidar de minha compreensão de Deus, assim como há uma diferença entre confiar em Deus e confiar em minha compreensão de Deus”. A seguir ele faz uma pergunta que aqui é fundamental: “Seria eu capaz de duvidar de minha compreensão de Deus e, ao mesmo tempo, confiar no Deus que está além de minha compreensão”?

Hoje vejo que, em meio à crise de sete anos atrás, embora eu não soubesse formular essa diferença tão claramente como fez McLaren nas palavras acima, de algum modo, fui guiado por essa convicção de que o que estava em xeque não era Deus, nem a fé, mas a compreensão que até então sustentei a esse respeito. Por isso aquele foi também um exercício de paciência (comigo mesmo, com Deus e com a crise), de maturidade e de humanidade, em que as dúvidas passaram cada vez mais a coexistir com a fé sem que isso parecesse, de modo algum, estranho ou absurdo, como o é em alguns contextos religiosos. Dúvidas e fé tornaram-se parceiras de jornada, como relato especialmente nos capítulos 2 e 3. Então, algumas coisas começaram a ficar um pouco mais claras e a fazer sentido. De repente, como bem expressou McLaren:

...sem esperar, lá estava: uma surpresa, uma sensação repentina de que Deus estivera comigo durante todo o meu período de dúvidas, que eu havia suportado e passado por um teste difícil. Mesmo depois de ter abandonado tantas de minhas certezas, mesmo depois de minha ingênua confiança ter escorregado entre meus dedos, mesmo depois de ter reconhecido que o que quer que Deus fosse, Deus estava além da minha compreensão presente e possível, Deus estava lá, ainda comigo. Parecia que eu estava deixando um capítulo antigo para trás e entrando em algo novo. (MCLAREN, 2021, p. 93)

Este livro é, portanto, o registro dessa transição de um capítulo antigo para um novo; o testemunho de uma conversão em relação a uma dada compreensão de Deus em direção ao Deus que está além de toda compreensão; a libertação de um grito que estava preso no peito; o caminho de uma espiritualidade em transformação!

Créditos: MENEZES, Jonathan. Espiritualidade em transformação: sentido, humanidade e vida. 2a ed. São Paulo: Recriar, 2021, pp. 9-14.

[Para adquirir o livro, escreva para: joncalvin7@hotmail.com]


 

2 Comments

  1. Gabrielly Klain disse:

    Me identifico demais com a sua escrita, professor; em especial, esta.
    Deus o abençoe! PS. Ansiosa por adquirir esse livro.

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