Estou relendo Kierkegaard nesses dias. O revolucionário filósofo dinamarquês do século XIX, cuja obra se tornou um dos baluartes do existencialismo e do pensamento cristão, mas não sem antes desafiar as formas do pensamento (teológico e filosófico) de muitas maneiras. Até porque baluartes que não nasceram de uma profunda instabilidade causada no solo próprio, do qual depois foram erigidos em grande reverência, não passam de bibelôs ou bezerros banhados de ouro: reluzem como nada, mas são ocos por dentro.
Em um dos libelos literários, oferecidos ao mundo na pele de seu pseudônimo Johannes Clímacus, Kierkegaard pretendia ofertar nada mais que algumas migalhas de seu pensamento filosófico, serviço que ele alegava prestar de acordo com seus talentos, dada à sua abstenção de servir ao Sistema. Ou seja, esse autor servia à sua própria santidade (isto é, a quem ele era e, consequentemente, ao Criador que graciosamente o serviu de sua singularidade) e não ao Sistema. Daí escrever como Sören, mas publicar-se como Clímacus, já que, na visão dele, nem sempre é bom que a obra de um autor coincida com o nome gravado em seu CPF. Não se trata do ato de se esconder por trás de um pseudônimo, mas de não querer que a voz de seu eu autêntico fosse sempre confundida com o nome de batismo, que o Sistema registrou e do qual acredita poder se apossar e controlar de algum modo.
Não se trata de covardia, mas da ‘coragem de ser’ quem se é e de ‘ser como uma parte’, como nomeou Tillich. Trata-se de falar, do modo mais claro possível sobre os problemas que nos rondam, atravessam e atormentam, colocando o dedo na ferida do humano e dos sistemas por ele inventados, utilizando, porém, uma via marginal, um nome inventado, para que o seu ser não seja confundido com um nome nefandum, isto é, um nome expropriado pelo Sistema a fim de sorrateiramente sequestrar uma personalidade mais profunda, colocando-a à serviço de uma vontade alheia a si mesma, orquestrada por um suposto ‘interesse geral’. Ou seja, a fim de nos fazer marionetes do Sistema por trás de nomes próprios ou de rótulos.
Um dos pontos magníficos do prefácio de Sören ao seu libelo clímaco, é quando ele disse acreditar que seria impossível (naquele momento tão apoteótico e megalomaníaco da humanidade - o século XIX -, um momento, por assim dizer, tão hegeliano) que a “um pequeno folheto” fosse atribuída uma “importância histórico-mundial”. Somente se fosse tomado por uma estupidez sem tamanho teria cedido a tal tentação, qual seja: a de querer atingir o que ele chamou de “doidice vociferante da loucura superior, cujo sintoma é a gritaria”. Ou seja, seria um grande idiota e uma grande fraude se tivesse aceito “cair nas graças” do Sistema ou do Povo, quem sabe sob a ânsia - tão comum em nossos dias - de ser não apenas últil, mas de obter sucesso aos olhos cobiçosos da opinião pública.
Aliás, tenho a impressão de que esse é o único tipo de sucesso concebível na sociedade permeada pelo digital, em que “mitar”, “lacrar” e “sambar na cara da sociedade” tornaram-se meios bastante usuais. É como se Kierkegaard estivesse dizendo que o tipo de obra que ele estava escrevendo não poderia ser, em hipótese alguma, uma “obra de lacração”, por uma razão simples (embora nem sempre óbvia): é que o que hoje denominamos “lacração” tem apenas aparência de revolucionária. No fundo ela é medíocre porque subsidiária e subalterna do Sistema, o mesmo que às vezes a ataca e a ela combate superficialmente, mas que a mantém (por debaixo dos panos) com curtidas, visualizações aos milhares e, graças aos inúmeros dedinhos que digitam e arrastam pra cima, monetização.
A vida nesse mundo sistêmico, porém, é supremamente irônica e cruel; nem sempre ela nos dá de volta o prêmio ou pagamento que esperávamos receber por ter lhe entregue nossas almas numa bandeja ou em gesto reverente. Alguém pode muito bem gastar sua vida, energias e talentos tentando agradar a gregos e a troianos - ou mesmo se tornando uma ‘tchutchuca do centrão’, como foi chamado nosso atual presidente - e acabar, no fim das contas, não agradando a ninguém. Ou, quem sabe, pode fazer como Kierkegaard: conservando a alma (o nome que ninguém seria capaz de pronunciar) acabar, ao menos em vida, do mesmo jeito: sendo hostilizado pelos sistemas filosófico, teológico e eclesiástico de seu tempo.
Os antigos crentes (alguns ainda subsistem em peles novas) acreditavam que era preciso “ganhar almas para Jesus”. O que eles não entenderam (e ainda não entendem) é que (1) uma alma não pode ser ganha a menos que se venda a um Sistema (ainda que religioso ou teológico); (2) o Jesus dos Evangelhos não está interessado em ganhar almas para ele, e sim que não percamos a nossa alma (o nosso ‘eu mais que sagrado’) de vista. Isso implica em não aceitar sacrificá-la nos altares da promessa de um céu (aqui na terra ou no além-pós-morte), de uma fama furtiva ou de uma monetização ilusória. Afinal, indagou ele, ‘de que vale ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma’?
Jonathan Menezes