1. O que é espiritualidade e como pensá-la a partir da história?
Espiritualidade é uma noção que assume significados diversos, em diferentes contextos (não se limitando ao âmbito religioso – mais ainda atualmente). A palavra ‘spiritualitas’ aparece em textos teológicos a partir do século XII – designando a qualidade daquilo que é espiritual -; mas “espiritualidade” é um conceito que passou a ser utilizado maiormente a partir do século XIX.
2. Então, quando olhamos no retrovisor da história, para o cristianismo e a Bíblia, o que se entendia por “espiritualidade” nos tempos de antigamente?
Biblicamente falando, a palavra vem de “Espírito", seja para se referir ao Espírito Santo, seja para se referir à nossa natureza ou origem espiritual, ou para designar um certo “modo de andar” ou “modo de ser” (no Espírito). Tenho uma hipótese sobre isso: com o tempo, ela passou a ser uma função da vida religiosa – como estabelecer relações com o divino? -, ao meio que articula a relação entre o mistério e as práticas (devoções, ritos e preces).
3. Quer dizer que a religião cristã, na medida em que foi se constituindo em um corpus doutrinário e institucional, ao longo dos primeiros séculos, passou a tentar domesticar as formas de espiritualidade? E ela conseguiu?
Sim, e parcialmente sim - são as duas respostas curtas. Agora vamos à mais longa. Em primeiro lugar, a criação e repetição, nas liturgias cristãs, de gestos, cantos, preces, com vistas a uma aproximação com o mistério, passou a ser cada vez mais uma prerrogativa do clero e menos do laicato (para usar a clássica divisória do cristianismo). Às vezes isso assumia um aspecto legalista, como na época carolíngia (sécs. VIII a X), por exemplo, em que a vida espiritual foi muito influenciada pelo Antigo Testamento, em que muitos preceitos datados passaram a vigorar, como a “impureza da mulher depois do parto, que ficava excluída da Igreja até a cerimônia da convalescença, abstenção de relações conjugais durante certos períodos do ano litúrgico, severas penitências infligidas às poluções noturnas, etc.” (André Vauchez). Em segundo lugar, Vauchez diz que “uma prática administrativa da religião” era utilizada como forma de repressão às divisões ou rupturas e às heresias. Entretanto, quando formas de controle passaram a vigorar na religião oficial (elitizando as formas de culto – como a missa feita em latim – e ignorando a necessidade das massas), a tendência foi que a “vida espiritual das massas transbordava dos limites obrigatórios da instituição eclesiástica e até do dogma cristão”.
4. Daí surgiram expressões de fé e espiritualidade distintas ou marginalizadas, em relação ao que era ensinado na doutrina oficial da Igreja?
Sem dúvida. O historiador André Vauchez (que venho citando nessa conversa) afirma que “mesmo nas regiões cristianizadas de mais longa data, a religião oficial era apenas, em muitos casos, um verniz que recobria superficialmente elementos heterogêneos qualificados de ‘superstições' pelos clérigos”. Isso se dava em função do permanente contato de pessoas convertidas com uma rede de instituições e práticas oriundas do paganismo antigo ou germânico, dos quais muitas delas provinham. Tais como a adoração de elementos, o curso das estrelas e até os eclipses. A confiança nos amuletos e nos sortilégios; a crença nas feiticeiras, bruxos e maus espíritos. O apelo cada vez mais recorrente a intermediários do sagrado, como anjos, santos, e, associados a estes, o culto das relíquias etc.
5. Pensando em outras expressões de espiritualidade mais marginais, por assim dizer, sabemos que no século IV da era cristã, no auge da crise espiritual do cristianismo - quando este, a partir de Constantino e mais acirradamente sob Teodósio – tornou-se “religião oficial do império”, houve homens e mulheres que buscaram o refúgio do deserto como forma de desenvolvimento de sua espiritualidade. Ficaram conhecidos como padres e madres do deserto. O que buscavam esses cristãos e que tipo de espiritualidade desenvolveram no deserto?
Creio que essa “fuga para o deserto” representou bem mais que um escape puro e simples; trata-se de uma libertação, de uma nova forma de martírio. Com o cessar das perseguições, as testemunhas de Cristo já não eram mais testemunhas de sangue. Aquele mundo, dentro dos limites do império, não apresentava mais resistência à mensagem cristã (não nas aparências). Na prática, o mundo não havia se tornado melhor, e ainda preferia a escuridão à luz. Dessa forma, Antão, Agatão, Macário, Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram alguns dos líderes espirituais no deserto. Ali fundaram um modo de ser baseado nas palavras de aba Arsênio: “Foge, fica em silêncio e ora”. Segundo Henri Nouwen, elas denotam três meios para “impedir que o mundo nos molde à sua imagem” e se constituem, desta forma, em três possíveis caminhos para uma vida no Espírito – embora não sejam os únicos, nem última palavra neste quesito. Sobretudo porque esta vida no Espírito não é vida “fora”: nem do mundo, nem do corpo e muito menos dos conflitos e dilemas humanos. Pelo contrário, é em meio ao enfretamento de todas estas outras coisas que a necessidade do deserto se torna urgente até os dias de hoje, e a espiritualidade cristã, efetiva e transformadora.
6. Para finalizar, o que uma pessoa interessada no tema da espiritualidade cristã pode aprender através de um olhar rigoroso para a história da igreja?
Creio que muitas coisas, quero destacar três: (1) Que a espiritualidade por nós vivida, através das eras, é uma espiritualidade transmitida. Transformações acontecem nos modos de ser e pensar, sem dúvida, por isso não podemos entendê-la fora da dinâmica entre transmissão e transfiguração, isto é, mudança. (2) Que o olhar histórico, por assim dizer, não pode se limitar a reunir e datar informações sobre como se vivia e se pensava em tais ou quais épocas, mas, como ensinou Michel de Certeau, “incide essencialmente sobre a correlação entre eles” - o que significa, por exemplo, perceber como um determinado movimento está interligado com outro, influencia outro etc. Isto não está dado. É tarefa do estudante de história promover, justificar e interpretar essas conexões. (3) Por fim, que há um elemento de mistério que perpassa a história da espiritualidade cristã, que escapa à nossa compreensão, pois diz respeito à experiência de homens e mulheres com Deus, por meio da ação indomável de seu Santo Espírito. Esse elemento nos ajuda a entender tanto a dinâmica sobre a qual falei anteriormente, como nos orienta na esperança de que a fé em Cristo subsiste tanto por nossa causa, quanto apesar de nós mesmos. Só por isso podemos falar em “espiritualidade”.
[Referências: VAUCHEZ, André. Espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995].