ENTERRANDO AQUI, RENASCENDO ALI – Jon Menezes
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ENTERRANDO AQUI, RENASCENDO ALI

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Qual é a vida para a qual você precisa morrer, a fim de encontrar as sementes da eternidade que irão brotar logo ali?

 

Recentemente passei pela experiência de ler o Evangelho de João e pregar publicamente sobre ele em minha comunidade de fé. Nessa reflexão quero inverter um pouco essa experiência, e perguntar como será se eu me permitir “ser lido” pelo Evangelho. Porque João tem um interesse investido em demonstrar como o verbo se encarna, isto é, no processo em que, tendo lido e compreendido o Evangelho, permitimos que ele nos leia e, lendo-nos, faça-se verbo encarnado em nós. Se faça gente, me faça gente.

A passagem de João é a seguinte: “Eu lhes digo a verdade: se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos. Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade” (Jo 12:24-25).

Antes de falar do texto, talvez seja interessante começar descrevendo o que se passou em mim até chegar nele, isto é, o que tenho lido, o que tenho visto e experimentado nesses dias. O tema do burnout voltou a mim nesses dias, através de um livro Can’t even (ou Não aguento mais não aguentar: como os Millennials se tornaram a geração do burnout), escrito pela jornalista Anne Helen Petersen. Millennial, para relembrar, é a geração dos jovens e/ou adultos nascidos entre 1981 e 1995 – como um Millennial, então, decidi que precisava ler esse livro.

Uma das interessantes descobertas foi que os Millennials hoje são a maioria da população em quase todos os países do mundo: 25% nos EUA, 34% no Brasil, 23% em todo o globo terrestre. Essa é a geração que se considera “jovem demais para ser velha, e velha demais para ser jovem”. Também aprendi a diferença entre burnout e exaustão. “Exaustão”, explica a autora, é chegar a um ponto em que você não consegue ir além, enquanto “Burnout” significa atingir o mesmo ponto e, no entanto, pressionar-se a continuar por dias, semanas ou anos. O problema é que não se trata de uma “aflição temporária”, mas de nossa “condição contemporânea”. Tentar fazer tudo e ser tudo, ao mesmo tempo, sem nenhuma ajuda ou rede de apoio é o que, segundo a autora, tem feito desta a geração do burnout.

A pergunta é: de onde vem essa pressão? Da sociedade, da família, do sistema? No livro Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han respondeu que essa pressão, que muitas vezes nos leva ao limite de nossas forças em um ativismo desenfreado, em um consumo de informações exacerbado, vem de nós mesmos, de nossos “capatazes interiores”, que nos impulsionam a prosseguir, mesmo quando o corpo está gritando para a gente parar, desacelerar, dosar melhor. Então, o paradoxo dessa sociedade (em que os Millennials são maioria) é: “Supomos ser livres hoje, mas nos exploramos apaixonadamente” (Byung-Chul Han). Por isso, ambos (Han e Petersen) parecem chegar a conclusão semelhante: o projeto de liberdade da civilização ocidental fracassou; nós fracassamos. E como vamos lidar com isso?

Há aproximadamente 7 anos mais ou menos eu sofri meu primeiro burnout. Vivia um período em que eu me cobrava excessivamente, mais do que minha frágil psique era capaz de aguentar. Eu achava que essa autocobrança excessiva era um traço da minha personalidade – hoje eu entendo que, mais do que um traço congênito, é uma marca da minha geração. E o que me fazia “não aguentar mais não aguentar” não era o que Han diagnostica como “cansaço de ser quem se é”, mas exatamente o oposto: um cansaço da personagem, um cansaço de não ser quem eu era, de não aceitar minhas limitações, de não fazer luto em relação ao meu projeto fracassado de ser. Eu não apenas me cobrei em excesso, mas prossegui fazendo isso sistematicamente por um longo tempo, por isso sofri um burnout, hoje eu sei.

Naquele tempo, eu senti que encontrar minha porta para a liberdade significava não apenas recorrer a algumas técnicas disponíveis: desacelerar, tirar umas férias, descansar, fazer meditação, orar mais, e assim por diante. Era preciso um passo mais radical, se eu quisesse não apenas sobreviver, mas renascer: era preciso morrer para um “Jonathan idealizado”, isto é, um Jonathan que nunca existiu a não ser na minha imaginação, e na dos outros. Além de tudo, eu já sentia que não tinha estômago para seguir a lógica de escada, de projeção, que eu via em outros jovens da minha geração. A cultura evangélica não é o melhor dos ambientes para isso. Mesmo em ambientes que tinham tudo para ser diferente – como os que eu frequentava –, acabei notando a lógica imperante é basicamente a mesma: quanto maior a projeção, maior a exposição, maior o sucesso, o reconhecimento, a sensação de que você “chegou lá”.

Em 2015, no olho do furacão do meu burnout, fui convidado a falar em um evento importante, que reuniria muitas pessoas numa mega-igreja em São Paulo. Na ocasião, eu estava em evidência pois seria um dos palestrantes do evento, falaria ao lado de um preletor famoso no meio cristão evangélico, e lançaria um livro. Foi então que, no calor daqueles acontecimentos, tive uma epifania: enquanto, por conta da exposição, eu era cortejado por pessoas que eu não conhecia, percebi que, antes mesmo de entrar de cabeça nesse modus operandi e de transitar como figura pública no meio evangélico, teológico, eu estava morto para ele.

Quero deixar bem claro que não há nenhum demérito ou demonização em marcha aqui para aqueles/as que tomam parte (e conseguem transitar bem nesse meio), mas aquilo, definitivamente, não era para mim - e precisamos ter coragem de reconhecer o que não é para nós, e sair honradamente enquanto podemos. Eu sabia disso, e mais: tinha a liberdade de decidir por mim. Por isso, nenhum dos elogios que recebi, nem afagos no ego, foram tão marcantes quanto a palavra de um amigo experiente, na noite em que apresentei minha palestra: “Você arrebentou lá em cima, Jonathan! Mas, deixa eu te dizer uma coisa, porque gosto muito de você: nós não precisamos de mais um Avatar evangélico. Precisamos que você seja você”.

Essa frase de meu amigo bateu muito com meu sentimento. E eu sabia que seria preciso mais que boa vontade para seguir meu caminho; seria preciso coragem para frustrar os planos e ideais que os outros tinham para mim e sobre mim; era preciso morrer para aquele projeto, a fim de renascer eu mesmo do outro lado do horizonte. Porque, às vezes, os pensamentos que os outros têm a nosso respeito, as expectativas que eles nutrem (e que nós mesmos nutrimos), não são os de nosso verdadeiro-eu, nem são também os de Deus. E cada um de nós tem a liberdade de decidir a quem vamos ouvir e o que vamos ser: a nós mesmos ou uma personagem.

Assim foi também com Jesus. Para muitos, ele era um personagem famoso, uma figura controversa que muitos queriam ver morto, outros queriam conhecer. Como os gregos que chegaram em Jerusalém durante a festa da Páscoa, querendo “ver Jesus” (Jo 12:20-22). A reposta de Jesus, em princípio, parece nada ter a ver com o que eles estavam esperando. Ele fala do grão de trigo, que precisava ser plantado na terra e morrer para assim produzir muitos grãos. Do contrário, ficará sozinho. Do mesmo modo, concluiu ele, é a nossa vida: quem se apegar a própria vida, perdê-la-á, mas quem aprende a desapegar dela, encontrará a vida eterna agora.

Assistindo ao documentário com Byung-Chul Han sobre a “Sociedade do Cansaço”, chamou-me atenção o seguinte relato que ele faz: “Recentemente florescem seminários sobre morte na Coréia do Sul, onde as pessoas escrevem testamentos e entram em caixões. Evidentemente estão esperando por um descanso de uma vida governada por cansaço, correria e trabalho. Simular sua morte na esperança de ganhar perspectiva diferente de vida, ou encontrar um valor para vida. Todas essas coisas expressam desesperança”. Perceba que paralelo interessante com esse texto de João. O que Jesus propõe, porém, é algo mais radical que uma simples simulação ou ritual...

Ele nos convida a enterrar uma vida aqui, para renascer para outra melhor ali.

A tradução A Mensagem, diz: “Qualquer um que se apega à própria vida apenas como ela é a está destruindo. Mas se você perde sua vida, sem criar obstáculos para o amor, você a terá para sempre, pois é a vida real e eterna” (Jo 12:24-25). Me chama a atenção esse modo de expressão: “a vida apenas como ela é”. Lembra a visão fatalista ou determinista, que diz: “faz parte do jogo da vida”, “é assim que as coisas são”, “é desse jeito que as pessoas (que querem vencer na vida e ser bem-sucedidas) fazem”. Como o CEO de sucesso, que vai a uma universidade dizer aos estudantes o seguinte: “Se você quiser chegar aonde eu cheguei, ser rico, respeitado e bem-sucedido, saiba que você vai ter que perder alguns aniversários dos teus filhos”. E então nós estranhamos quando crianças, adolescentes, estão sem vontade de viver, entregues à falta de afeto e catatônicos diante de seus smartphones.

Ao final do livro, porém, A. H. Petersen nos convida a deixar essa ilusão conveniente; a reconhecer quando nosso estilo de vida – que não precisa só estar ligado à sua atividade profissional, mas envolver outros fatores também, como relacionamentos, por exemplo – se torna insustentável, e a dizer, quase como um mantra: “Você não precisa viver desse jeito”. Não importa qual seja a mudança, a revelação permanece a mesma (diz agora Petersen): “As coisas não precisam ser assim”.

Perceba que o convite de Jesus não é para uma moral ou prisão religiosa; é para a saída dessa prisão, é um caminho de liberdade, como disse no capítulo 8:32: “Então conhecerão a verdade e a verdade os libertará”. A questão, voltando ao capítulo 12:26, é: estamos preparados para segui-lo e a estar onde ele está, isto é, a se colocar diante da vida como ele se colocaria e a dignificar a vida como ele o fez? Nesse sentido, também cabe perguntar: o que é que você precisa enterrar aqui agora; qual é a vida para a qual você precisa morrer, a fim de encontrar as sementes da eternidade que irão brotar logo ali? O chamado de Jesus à liberdade nos lembra: isso passa por uma decisão. E ela é toda sua, de mais ninguém.


 

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