CARTA A UM IRMÃO HOMOAFETIVO – Jon Menezes
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CARTA A UM IRMÃO HOMOAFETIVO

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Escrevi esta mensagem como resposta a um email de um irmão leitor nos idos de 2015. Menções temporais se referem, portanto, a esta época. Oito anos depois, resolvi publicá-la em meu site (omitindo questões pessoais, é claro), não porque representa o que de melhor penso ou se que pode dizer hoje sobre o tema – tampouco tento ser exaustivo no que digo de forma esboçada aqui –, mas porque, quem sabe, possa servir de conforto a outro irmão (ou irmã) que tem atualmente sofrido na pele o mesmo tipo de preconceito e discriminação que pude testemunhar na vida desse querido irmão anos atrás.
 

Querido irmão,

Muito obrigado por seu email e desabafo. Fico feliz que, no meio dessa turbulência toda de sua vida, tenha encontrado guarida em Henri Nouwen e em alguns de meus panfletos. Sinto-me tocado por seu testemunho e luta, sobretudo porque temos a mesma idade, 34, e nem de perto passei pelos conflitos e a solidão que você enfrenta, tampouco fui massacrado por esse sistema religioso castrador do qual você faz parte, não pelo menos da maneira como você tem experimentado. Até por isso, tomo como missão de vida e ministério ajudar pessoas oprimidas e machucadas por esse sistema, falando do evangelho de amor e liberdade de Jesus. Como um não especialista na questão e um não ocupante desse lugar de fala, é o melhor que posso fazer.

Como eu disse em um de meus artigos, especialmente num contexto onde há amor, amizade significativa, compromisso e fidelidade, não vejo razão alguma para a repressão sexual, e isso digo muito mais baseado numa sensibilidade em relação à Palavra de Deus em seu sentido mais amplo, e menos na objetividade da letra, em seu sentido literal. No sentido literal, a prática homossexual é rechaçada nos textos aos quais você já deve conhecer de cor e salteado, porque e quando vinha acompanhada de promiscuidade e idolatria. A questão de Paulo em Romanos, por exemplo, a meu ver é com a idolatria e tudo o que ela envolvia, o que incluía homens e mulheres deixando sua forma natural (ou seja, heterossexual, uma vez que eles/as eram heterossexuais em sua maioria) para se entregar a “paixões infames” e à “torpeza”, merecendo, assim, punição por seu erro, é o que diz o texto. Leitores da Bíblia naturalmente subentendem que esta punição é o inferno – um “lugar” para onde se destinam a fim de experimentar a condenação eterna (nada mais estranho a um Deus de amor). Tenho outra interpretação sobre o inferno, que não vem ao caso agora.

O que esses “intérpretes” da Bíblia, e até alguns dentre os chamados exegetas e especialistas, ignoram é que estes textos todos silenciam a respeito da condição homossexual, como explanei em meu texto “Homossexualidade: saindo de meu armário teológico” (publicado no blog Escrever é Transgredir, em 2013). Por uma razão muito simples: naquele tempo, como até bem pouco tempo, não se sabia nada sobre essa condição e nem se poderia saber. Havia tantos homossexuais quanto há hoje, e muitos deles viviam uma vida, sexual inclusive, regular – aliás, entre os pagãos da Grécia e de Roma, a prática homossexual era corriqueira até mesmo entre heterossexuais. É sabido que a Bíblia não normaliza esta prática, pelo contrário, ela reprova (ou melhor, homens que escreveram estes textos reprovavam, e tinham seus contextos e razões para isso), mas tampouco podemos dizer que ela condena a condição em si, ou mesmo casos em que alguém, como você, decide se realizar dentro de um relacionamento estável e saudável de fidelidade com alguém a quem ama, respeita e de quem quer cuidar. Há um silêncio sobre isso, tanto quanto há, literalmente, sobre o que chamamos de sexo no namoro ou antes do casamento; nas palavras de J. Harold Ellens, a bíblia não moraliza sobre nem um caso nem outro.

E quando há esse tipo de silêncio, por assim dizer, normalmente queremos fazer com que certos textos falem mais do que de fato estão dizendo. E já vi tanto fundamentalistas quanto liberais fazendo isso. Daí meu cuidado aqui para que não enveredemos pelo mesmo caminho, mas atentemos e estudemos melhor o que estes textos querem dizer, para quem, e em que contexto, antes de aplicá-los diretamente à situação atual.

Perguntar se Deus tem algum propósito em relação à homossexualidade, ou por que Ele permite que pessoas nessa condição sofram tanta privação, preconceito e violência, é semelhante a perguntas como por que pessoas inocentes sofrem, por que o justo padece enquanto o ímpio triunfa, ou por que criancinhas morrem de fome e inanição na África ou nas periferias do Brasil. Ou seja, o lugar do questionamento é legítimo – a exemplo de Jó, do sábio de Eclesiastes ou de alguns salmistas –, mas não há resposta objetiva para isso. Eu pelo menos não tenho. Mas acredito num Deus que ama tanto, que pode até sofrer com nossa condição e muitas vezes nos dá até meios para responder criativamente a ela, mas que não intervém diretamente em muitos de nossos negócios, simplesmente porque eles são nossos, são fruto da condição humana, e não dependem de Deus para existir ou deixar de existir. Dependem, na maioria das vezes, de nós mesmos, de nossos esforços por fazer de nosso mundo não um lugar hostil, mas efetivamente nossa morada, lugar de todos e para todos. É uma pena que hoje isso não passe de idealismo barato para mentes pragmáticas e insensíveis, que povoam inclusive o mundo religioso.

A despeito de tudo, acredito que há tanta esperança para você quanto deve haver para mim e qualquer outro ser humano, passando por condições diferentes, mas não melhores ou piores; não me refiro à esperança de que a sociedade ou as igrejas todas mudem de mentalidade e passem a ser diferentes ou vivam o ideal, porque sinceramente acho que estamos muito longe disso. A esperança sobre a qual falo é a que encontramos em Cristo, a esperança, ou melhor, a certeza de que somos aceitos apesar de sermos inaceitáveis, do ponto de vista humano: aceitos e acolhidos como filhos e filhas amados e amadas do Pai, conquanto sedentos estejamos pela vida abundante e salvação que Dele emanam. Não falo como dogma, mas como ato sincero de fé: não acredito que esta aceitação seja condicional à pessoa deixar de ser homossexual ou deixar de se relacionar dessa forma; antes, que nós aceitemos ser aceitos por Deus, que nós abracemos seu caminho de vida e amor, do mesmo modo como Ele escolheu nos abraçar incondicionalmente em Cristo Jesus. E, assim, nos tornemos cada vez mais parecidos com o Filho em tudo o que somos e fazemos.

Existem pessoas que são heterossexuais e supostamente “sacrossantas”, mas não entendem nem um pouco dessa linguagem na prática; em contrapartida, existem homossexuais – pecadores inveterados aos olhos de um religião de certo tipo – que vivem com integridade seu chamado como filhos/as de Deus. No fim das contas, lembrando aqui da parábola do publicano e do fariseu de Lucas 18.9-14: quem, no final, desce justificado? Aquele que se julga bom e bate no peito diante de Deus jogando confete sobre sua retidão, ou aquele que, admitindo-se pecador e falto, clama: “tende misericórdia de mim, pecador”?

No fim das contas, querido irmão, sendo homossexuais, heterossexuais ou outros, todos somos humanos; e sendo humanos, pecamos; e em pecando, carecemos da misericórdia e da graça de Deus. Por isso, siga seu caminho de vida e fé buscando menos aprovação de homens – sabendo que muitos deles continuarão julgando você –, e mais aceitando a tragicidade da aprovação de Deus na cruz. Gostaria muito de conhecer uma comunidade próxima a você que te pudesse acolher e amar do jeito que você é. Não conheço. Mas pode contar com minha amizade, mesmo a distância, mesmo limitada de várias formas... e com minhas orações.

Que o Senhor te auxilie em suas decisões, e que elas representem o melhor Dele para sua vida.

Sinceramente,

Jonathan Menezes


 

2 Comments

  1. Greice Keli Carvalho disse:

    Que bela e sensível resposta!

    Estava procurando despretensiosamente algo sobre esse assunto nesse blog, e que grande surpresa essa resposta a um irmão homoafetivo.

    Não foi uma resposta para um único irmão, mas para muitos!

    Obrigada.

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