Em que medida os caminhos da espiritualidade conversam com os da psicanálise? Poucos praticantes de psicanálise clínica e/ou pensadores do campo psicanalítico debruçaram-se com seriedade sobre a questão. Seja porque a análise é (e, para todos os efeitos, deve permanecer sendo!) leiga, isto é, livre de égides institucionais advindas da medicina, da psicologia ou da religião (ao menos no Brasil), seja porque não raro encontramos o preconceito segundo o qual religião e espiritualidade seriam caminhos equivalentes.
Por que um preconceito?
As religiões ganham muito quando se nutrem das tradições de espiritualidade (como a tradição de Jesus de Nazaré, por exemplo). Elas nascem dessa experiência. Mas uma pessoa não precisa trilhar um caminho religioso necessariamente para ter uma espiritualidade. Logo, ser espiritual é uma coisa; ser religioso é outra. É possível (digo desde já) trilhar um caminho sem o outro.
Mas o que seria, então, espiritualidade?
Robert Solomon a definiu como ‘um amor bem pensado à vida’. Nessa definição, ser espiritual é ser do amor, mas não necessariamente é ser da fé. Quando se é uma pessoa espiritual do amor e da fé, ao mesmo tempo, o amor à vida se coaduna com o amor do/no/ao Eterno. Amo a vida, logo amo o Eterno, o amor primeiro, o Ser-em-si, a Vida-em-si.
E o que a psicanálise tem a ver com isso?
Como disse Freud em carta a Jung, ela é uma cura pelo amor. O amor de transferência (do paciente ao analista), sem dúvida. A ‘sombra’ de um amor da infância? A prova da ação do inconsciente – essa parte oculta que determina o que somos? Fato é que desde Freud, “não há teoria e prática psicanalítica que negue a centralidade do amor na cura”, como disse André Green. E quem negaria o caráter ‘espiritual’ de uma terapia criada “com e para doentes incapazes de viver”, como declarou Freud, para que recuperem tal capacidade?
Em resumo, para mim os vínculos entre espiritualidade e psicanálise passam, para começo de conversa, por três mutualidades (e temo que conseguirei trabalhar mais a primeira e a última logo mais, resvalando na segunda): (a) Por seu mútuo interesse na alma (psiche) humana; (b) Por envolverem, fundamentalmente, um convite ao desenvolvimento emocional ou maturacional do sujeito (para evocar um conceito caro a Donald Winnicott); (c) Por se tratarem de uma práxis ou um exercício espiritual.
Quanto ao mútuo interesse na alma humana, Freud falou com frequência de alma – termo conhecido da espiritualidade (embora nem sempre interpretado à maneira justa, isto é, em uma união intrínseca com a soma). Embora não tenha dado maiores esclarecimentos sobre o termo – além de dizer que ele é da ordem do inconsciente, e diz respeito a “características que nos parecem estranhas e até mesmo incríveis”, como disse no artigo 'O inconsciente' (1915) – não parece justo, como apontou Bruno Bettelheim, que seja traduzida como mente e a psicanálise reduzida a um “sistema de constructos mentais”.
Palavras de Bruno Bettelheim (1993) sobre Freud e a alma:
De certo modo, todos os seus escritos são amáveis e persuasivas insinuações, frequentemente cunhadas em frases brilhantes, de que todos nós, seus leitores, colheríamos imensos benefícios de uma idêntica viagem espiritual de autodescoberta. Freud mostrou-nos como a alma pode adquirir conhecimento de si mesma. Não é fácil tarefa chegarmos a conhecer as mais profundas regiões da alma – explorar o inferno pessoal, seja ele qual for, em que possamos estar sofrendo…
Bettelheim prossegue afirmando que:
As descobertas de Freud e, ainda mais, o modo como no-las apresenta dão-nos confiança de que essa exaustiva e potencialmente perigosa viagem de autodescoberta trará como resultado tornarmo-nos mais plenamente humanos, de modo que não mais possamos ser escravos, sem o saber, pelas forças sombrias que residem em nós.
E não é precisamente essa a principal premissa do que chamo de espiritualidade encarnada, a de "tornarmo-nos mais plenamente humanos"? Aliás, abre parênteses aqui: a crítica de Freud à religião nasce justamente do aporte desta ao que ele chama de “forças sombrias que residem em nós”. Com isso quero dizer que parte da religião é uma fábrica super potencializadora de neuroses (a condição dividida que grande parte da humanidade enfrenta em maior ou menor grau), não por outra razão senão por acirrar a guerra psíquica entre as pulsões de autopreservação e as pulsões sexuais do eu, sobre as quais falou Freud, sobretudo na primeira fase de sua obra (até 1920).
A religião tem se colocado, historicamente, contra essa segunda classe de pulsões, oferecendo abrigos temporários ao pobre eu, sem, porém, conseguir livrá-lo de si mesmo, de uma energia que vem de dentro e da qual não pode fugir. No máximo ocorre uma tentativa de fuga pela via neurótica - isto é, numa interminável luta de si contra si mesmo, sem consciência do preço que nossa saúde paga por se ver refém dessa guerra interior.
A tradição espiritual iniciada em Jesus de Nazaré concorda com a psicanálise que a redenção do ego não pode se dar pela via de uma guerra santa deste contra si mesmo, mas através da boa notícia (como disse o apóstolo Paulo) de que “não há mais condenação” para sua condição dividida. A partir daí não mais tentaremos eliminar a divisão, mas podemos aceitá-la, trabalhando em análise pela integração das diferentes partes que nos compõem sem que uma tenha que se sobrepor à outra, gerando um ser cativo.
Dito isso, ofereço-lhes agora (para finalizar essa brevíssima e primeira aproximação) 7 aforismos sobre psicanálise como uma prática espiritual.
1. A experiência analítica tem me conduzido ao reconhecimento do ‘isso’ que há por trás do Eu – a vida oculta que ‘tem raízes na vida real e imaginária da infância mais precoce’ (Winnicott) -, a me reconciliar com minha história, e a amar quem eu sou.
2. A experiência analítica me induz àquele movimento de descentramento narcísico necessário e inerente à toda forma de centramento possível.
3. A experiência analítica põe sobre a mesa a tarefa de ‘julgar a si mesmo’ a fim de não ser julgado por (nem de julgar a) outros, injusta e indiscriminadamente.
4. A experiência analítica me instiga a ser um investigador de minha alma, seguindo os rastros do desejo (o meu e o do Outro) tal qual um detetive segue sua pista, quem sabe em prol de um querer melhor.
5. A experiência analítica me convida a dar voz e acolhimento à criança que me habita a fim de possibilitar a maturidade do adulto. Que, enfim, pode voltar a ser criança (autêntica).
6. A experiência analítica tem me ensinado a ser paciente (em muitos sentidos) e a confiar no processo. Isto é, no da psicanálise em si, no meu enquanto pessoa única, e no que Cristo vem realizando em mim (cf. Fp 1.6).
7. A experiência analítica, enquanto exercício espiritual, tem descortinado para mim a possibilidade de uma nova integração, do ser como ‘Eu sou’, que, por sua vez, ‘dá sentido a todo Eu Faço’ (Winnicott).
Jonathan Menezes