PERDÃO – Jon Menezes
parallax background

PERDÃO

WINNICOTT
outubro 6, 2022
ESPIRITUALIDADE E PSICANÁLISE
janeiro 26, 2023

DUAS BREVES (RE)CONSIDERAÇÕES

 

I.

Visto que tem sido dito: perdoar alguém é como declarar aquela pessoa livre de débitos, enquanto ela ainda era devedora. Essa é uma forma comum de dar sentido ao perdão, e não estou aqui para dizer que está errada. Eu diria apenas que está incompleta.

E não porque é limitada enquanto definição (pois toda definição é), mas porque é limitada em sua premissa. Pois essa definição nasce da ideia de que eu, pessoa humana, tenho o poder de perdoar outra pessoa humana. Eu, porém, vos digo: nenhuma pessoa tem.

Porque o perdão, em sentido teológico, é fruto do amor, e vem do trono da graça como fluxo interminável e incondicional, apagando toda forma de dívida e de condenação, sem que a pessoa faça nada para obtê-lo. Desse modo, posso até persistir no ato de pedir perdão cósmico (perdão a Deus), mas é para que eu me sinta participante desse fluxo de perdão, que agora em mim transcorre livremente.

Assim, peço perdão não para Deus, mas, evetivamente, para mim mesmo, a fim de criar abertura em mim para o fluxo do amor divino, que traz consciência, e simultaneamente, liberdade, porque apaga a culpa. Trata-se, na verdade, de uma dupla consciência: a da culpa e a da ausência de condenação. Essa pessoa então é livre.

Rob Bell costuma dizer que perdoar é tornar alguém livre e perceber que essa pessoa é você mesma, aquela que perdoou ou que permitiu que o fluxo do perdão passasse por ela. Aliás, é isso que Jesus quis dizer com 'se perdoardes... o Pai também vos perdoará'. Não para dizer que Deus está retendo o perdão dele até que ofertemos o nosso, mas para dizer que só desfrutamos do perdão de Deus quando ele passa por nós como em fluxo, até, eventualmente, chegar em outras pessoas através de nós. Isso é graça. Se dissermos que não perdoamos, não apenas agimos com descabida arrogância, como nos tornamos impermeáveis à ação do perdão divino em nós. Porque o perdão só é 'em' quando é, ao mesmo tempo, 'através de' alguém.

Logo, nunca sou eu quem perdoo, mas Deus. Eu apenas aceito e, desse modo, também deixo fluir perdão. Se não deixo fluir, tampouco o experimento, não porque Deus não quer, mas porque eu não quis, mesmo sem saber das consequências de tal recusa sobre mim mesmo.

II.

Visto que também foi dito (com menos força de convencimiento, é verdade), que o perdão vem acompanhado de reparação das relações humanas rompidas, eu, porém, vos digo: perdão é uma coisa, reparação é outra. São parceiros no mundo ideal, mas nem sempre no real. Há razões teológicas o suficiente para encorajar o perdão, nenhuma delas que implique forçosamente na reparação (o conserto do que foi quebrado). Tampouco com a celeridade exigida pelo outro (ou pelo 'grande Outro', de Lacan, que pode ser representado pela Religião, por exemplo), algumas vezes.

Se perdoar é como deixar o fluxo do amor divino passar em mim e por mim, de modo a revogar a culpa, a minha e também a de outrem (com ou sem a consciência da outra parte), então, perdoar pode ser simplesmente deixar a pessoa ir, seguir sua vida, sua jornada, sem culpa, sem peso, com a liberdade que ela precisa para ser e, em hipótese alguma, subestimando a obra que Deus pode fazer na vida dela dali para diante. Deixar IR, sim, mas não necessariamente VIR (de volta, até mim). Porque tudo pode ser perdoado (por causa do infinito amor de Deus), mas nem tudo pode ser reparado (por causa dos limites próprios do que foi quebrado).

Não será a falta de reparação, contudo, sinal de que o perdão não foi real ou por inteiro? Eu digo que, não necessariamente. Primeiro, porque 'reter perdão' não faz sentido - nem teológica, nem praticamente, como expliquei na primeira parte desse texto. Segundo, porque, mesmo deixando que o 'rio do perdão' flua de mim para o outro, não há nenhuma vontade cósmica (nem mesmo aquela que se funda no Amor do Eterno) que me obrigue a admitir aquela pessoa de volta em minha vida.

Porque eu me amo o suficiente para poder decidir amar algumas pessoas (cuja conduta se provou tóxica e excessivamente doentia) à distância. E não poderia amar a outra pessoa com toda potência se não respeitar essa demanda interna de amor, no caso, a mim mesmo. Terceiro, porque o gesto do perdão implica em um processo, muitas vezes longo, a ocorrer na alma ferida de cada pessoa. Há data para começar, não para terminar. Não se força nem se orquestra perdão, muito menos uma possível reparação.

Isto, porém, não significa que a reparação não seja desejável ou ideal. Quem dera pudesse reparar, por exemplo, as fissuras causadas por sucessivos abusos (e de diferentes naturezas) a que já fui submetido da infância à fase adulta. Infelizmente, porém, considero que há machucados simplesmente irreparáveis. Apenas aprendemos a conviver com eles; podemos transfigurar, ressignificar, é verdade. Pela graça (e com ajuda terapêutica) podemos. Sou prova viva disso.

Para tanto, é necessário (sempre que possível) o máximo de distância da pessoa ou situação que o provocou (a experiência comprova). Isso significa que a cura de uma alma ferida é de uma ordem anterior e, portanto, mais importante que o restabelecimento de uma relação quebrada. Em nome da maturidade devemos, mais ainda, aprender a conviver com as consequências não-premeditadas das ações humanas. Nem sempre uma cura é seguida da outra ou pode ocorrer simultaneamente.

Muitas vezes uma alma pode se curar com o retorno da relação. Em tantas outras ela só se cura com a manutenção do distanciamento, por tempo indeterminado. Depende de cada pessoa, de cada relação, de cada processo. Isso se chama educação para a realidade. E não tenho mais paciência para teologias que apontem para o céu, mas não eduquem a partir da terra. É isso que tentei fazer nessas duas brevíssimas (re)considerações sobre perdão.

Jonathan Menezes


 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *