Donald W. Winnicott, em A capacidade de ficar sozinho (1958), desenvolve a tese de que isso - essa capacidade para a solidão, sobre a qual ele desenvolve neste famoso e importante artigo - não é possível senão numa ‘relação de ego’, isto é, na relação entre duas pessoas ou entre dois ‘eus’: no caso, o da criança e o da mãe. Uma delas está só (ou ambas estão), “e ainda assim a presença de uma é importante para a outra” (Winnicott, 1963/2022:37).
O autor nos remete, portanto, à ‘cena primária’ do indivíduo. Sua capacidade de ficar sozinho depende da presença de um ‘objeto bom’ em sua realidade psíquica (um seio ou um falo primitivos, um cuidado primitivo, uma presença maternal primitiva). Não há problema de ficar consigo mesmo quando um ego (o bebê), em estágio imaturo, recebe o apoio e a presença de outro ego (os pais). Cito Winnicott:
“Estar sozinho é uma decorrência do ‘eu sou’, dependente da percepção da criança da existência contínua de uma mãe confiável cuja confiabilidade permite ao bebê ficar sozinho e ter prazer em ficar sozinho, por períodos limitados. Nesse sentido, estou tentando justificar o paradoxo de que a capacidade de ficar sozinho se baseia na experiência de estar sozinho na presença de alguém, e sem que uma suficiência dessa experiência a capacidade de ficar sozinho não pode se desenvolver”. (Winnicott, 1963/2022:40)
O que Winnicott quis dizer com estar só, só é possível em decorrência do ‘eu sou’? Quem é esse ‘eu sou’? A resposta mais simples é: um ser humano integrado, em si mesmo e na vida. Explico: na teoria deste autor, o ‘eu sou’ é, em primeiro lugar, fruto do primeiro grande passo do humano na existência: o de estabelecer-se como uma unidade, atingindo uma integração, expressa na palavra ‘eu’. Que, porém, ainda não pressupõe um viver ou um ‘sou’.
Esse viver como um ser único no mundo (o ser que ‘é’), para nosso autor, tem tudo a ver com a mãe. Assim, em segundo lugar, Winnicott diz: “O indivíduo só pode atingir o estágio do ‘eu sou’ porque existe um ambiente que o protege” (p. 39). Em outras palavras, o ser só nasce na companhia de um ego afirmado e bem integrado por intermédio de uma presença significativa. Que, por sua vez (como veremos), permanecerá com esse ‘eu sou’ pelo resto de sua existência.
Isso significa, igualmente, que sem esse ambiente acolhedor, protetor e provedor, não existe um ‘eu’, nem tampouco um ‘sou’, integrados. Eis a origem de estados patológicos como o da psicose - do ser como ‘cristal quebrado’, fragmentado em pedaços de si, e que, portanto, também vê a realidade dessa forma despedaçada, não sendo capaz de acertar os ponteiros de seu relógio quebrado com os do mundo. São, por isso, pessoas incapazes de solidão e de comunhão no plano da saúde.
Winnicott transpõe a mesma situação para o setting analítico, e diz que o terapeuta faz as vezes, para seus pacientes, dessa mãe ‘suficientemente boa’ - segurando, acolhendo, provendo gradativamente a reintegração do eu da pessoa, na relação consigo e com os outros. No campo da espiritualidade, eu iria além de Winnicott e diria que o que a mãe é para o bebê (e o terapeuta, para seu paciente), Deus é para seus filhos e filhas: o ‘Eu Sou’ integrador, acolhedor e provedor para todo ‘eu sou’ único.
Para esclarecer este ponto, cito de novo Winnicott: “O indivíduo que desenvolveu a capacidade de ficar sozinho está constantemente capacitado a redescobrir o impulso pessoal, e o impulso pessoal não é desperdiçado porque o estado de ficar sozinho é algo que implica sempre (apesar do paradoxo) que mais alguém também está ali” (Winnicott, 1963/2022:41). Apropriando-me de Winnicott, do ponto de vista da espiritualidade, afirmo: esse ‘mais alguém’ é o Eterno ‘Eu Sou’, o amor e a presença originais que possibilitam a vocação de todo ‘eu sou’ humano.
Portanto, a pessoa em sua espiritualidade pode cultivar a arte da solidão, precisamente porque seu estar só é sempre um estar só na presença de si mesmo/a em relação interminável com o Tu Divino. De quem ela recebe graciosamente a boa notícia de que Ele já se agradou do que ela faz, sem que ela tenha feito nada ainda (cf. Ec 9.7). E essa pessoa cultivará, por conseguinte, também a arte da comunhão. Não terá problema algum em ser ela mesma na presença de outras pessoas. Pois é na presença de outras pessoas que o eu se-faz ‘mesmo’ (próprio, singular). E é no fazer-se mesmo com outros mesmos que a comunidade é segundo a e para a glória de Deus.
Jonathan Menezes
Bibliografia
WINNICOTT, Donald W. A capacidade de ficar sozinho [1958]. In: _________. Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. São Paulo: Ubu Editora; WMF Martins Fontes, 2022, pp. 34-43.