A RACHADURA ESSENCIAL – Jon Menezes
parallax background

A RACHADURA ESSENCIAL

A EMERGÊNCIA DO MONSTRO
junho 21, 2022
KIERKEGAARD
setembro 14, 2022

ROMANOS 7 EM PROSA PSICANALÍTICA

 

A ideia de uma “rachadura essencial” em nós é difícil de ser atribuída a uma só pessoa. O apóstolo Paulo em Carta aos Romanos, capítulo 7, é um bom exemplo, mas não o primeiro, de alguém falando sobre isso. Antes dele, indo para o AT, o Qohelet já havia tratado disso (vide Ec 7.15-21). Então suspeito que essa é uma das primeiras reflexões de base empírica do ser humano: a sensação de que cada um/a é uma pessoa, e, ao mesmo tempo, várias. É um ser habitado por muitos outros seres. É uma dimensão, um corpo, mas que interiormente ou psiquicamente se sente como alguém multi-(ou pluri)-dimensional. Afinal, como diz o psicanalista Lucas Napoli, “todos nós constatamos a existência de uma rachadura essencial nas nossas almas”.

E ele ainda deu a deixa: é sobre essa rachadura que o apóstolo Paulo está tratando em seu icônico discurso de Romanos – e eu gostaria de explorar as vantagens hermenêuticas de se olhar para o que Paulo chama ali de sua própria “desventura” a partir dessa imagem de uma rachadura, ao invés de recorrer ao velho dualismo. Napoli, então, conclui sua reflexão nesse ponto dizendo que o objetivo da psicanálise não é o de consertar essa rachadura essencial, mas de “evitar que ela se torne um abismo. Até porque, vale lembrar, toda rachadura é também uma abertura”.

Por fim, se a finalidade da psicanálise, ainda segundo Napoli, é a de nos dar a coragem necessária para encarar nossas contradições de frente, e mais, “sem a lentes farisaicas de nosso ego” (ou de nosso superego acusador), então fica a pergunta: qual é o benefício que o Evangelho apresenta na esteira da psicanálise e para além dela? É a pergunta que quero responder neste texto. 

No capítulo 7 da Carta aos Romanos, há pelo menos duas formas de tensão que Paulo apresenta, a saber: (a) a tensão ou luta com Lei; (b) a tensão ou luta com a natureza humana (“carnalidade”), a pele sob a qual habitamos. Em resumo: na tensão com a Lei, Paulo explica que quem decide o que é certo ou errado, a partir do evento Cristo, não é mais a Lei, mas nossa consciência e convicção pessoal. Essa convicção é tanto a do pecado, como a de nossa libertação da condenação do pecado (Rm 8.1). Logo, somos livres para fazer o bem, imperfeitamente, humanamente e, por isso, às vezes acertadamente e por vezes erroneamente. É assim que crescemos.

Já na tensão com a natureza humana, Paulo segue dizendo que a Lei de Deus, dos homens, da natureza humana (pecado) e a do inconsciente, estão aí para nos destruir e matar (se as ignoramos ou deixamos nos dominar), ou, se mudarmos a mirada, para ajudar a gente a decifrar quem a gente é e a lidar com quem somos. E a perceber o processo que faz com que lindos cordeiros e cidadãos de bem se convertam, num instante, em assassinos. Então, Paulo está certo nesse sentido, como também está certo em lembrar que não é possível se livrar dessa cisão ou rachadura essencial. Seu grito – “Como sou miserável! Quem me libertará desse corpo mortal dominado pelo pecado?” (7.24) –, assim, não é um protesto contra a humanidade, mas a realização desesperada de que não é possível escapar de si mesmo/a.

É aqui que chegamos de novo na psicanálise. Outro modo de chegar à mesma conclusão está na declaração de Sigmund Freud, em ensaio de 1917 chamado ‘Uma dificuldade da psicanálise’, de que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase equivale um duplo esclarecimento oferecido por ele: primeiro, que “a vida instintual da sexualidade não pode ser inteiramente domada em nós”; segundo, que “os processos mentais são inconscientes em si e apenas acessíveis e submetidos ao Eu através de uma percepção incompleta e suspeita” (Freud, 2010, p. 250). Nesse sentido, as palavras de ‘Herr professor’ a seguir endereçam indiretamente o problema de Paulo:

O Eu se sente mal, depara com limites a seu poder em sua própria casa, a psique. De repente surgem pensamentos que não se sabe de onde vêm; tampouco se tem como expulsá-los. Esses hospedes desconhecidos parecem até mais poderosos do que os submetidos ao Eu; resistem a todos os meios coercitivos da vontade, aprovados em muitas ocasiões, e permanecem imperturbados ante a refutação lógica, indiferentes ao desmentido da realidade. (Freud, 2010, p. 247).

A esses “hóspedes desconhecidos” Freud deu o nome de impulsos ou de pulsões, que podem até ser resistidos, mas não totalmente evitados pelo Eu. Impulsos fortes que demandam satisfação; e que, quando não satisfeitos, por entrarem em rota de colisão com os valores morais sustentados pelo Eu, são devidamente reprimidos, mas depois encontram uma via de escape inconsciente através do que a psicanálise chamou de “sintomas” ou “formações substitutivas”, que podem se manifestar de várias formas, quer seja em reações somáticas do corpo (uma gastrite nervosa, por ex.), quer seja por meio de reações nervosas (crises de pânico, comoções, depressões, etc.). Nesse momento, segundo Freud (2010, p. 248), o Eu tenta se convencer de que se trata de uma doença, de uma “invasão estrangeira”, e assim reforça seus mecanismos de defesa sem, contudo, conseguir entender “por que se sente paralisado de maneira tão estranha”.

Então Freud esclarece que não se trata de “uma invasão estrangeira”, mas do desconhecimento de uma parte de nossa psique que se aloja no inconsciente e, por isso, se furta tanto ao nosso conhecimento quanto à nossa vontade. “Por isso é tão fraca a sua defesa; uma parte de sua força luta contra a outra parte, você não pode reunir toda a sua força como se lutasse contra um inimigo externo” (Freud, 2010, p. 248). Podemos até reunir forças contra um inimigo externo – criar muralhas, reforçar trincheiras, estabelecer fronteiras; mas como poderíamos repetir isso com um impulso que nos é inerente? Dessa maneira, a pergunta de Freud é brilhante: “Ainda quando você não está doente, quem pode avaliar o que age em sua alma, coisas que você não vem a saber ou de que é informado erradamente”? (Freud, 2010, p. 250).

O apóstolo Paulo, por sua vez, lança mão do fraseado central para entender essa rachadura essencial no ser humano, desde sua perspectiva: “Não entendo a mim mesmo, pois quero fazer o que é certo, mas não o faço. Em vez disso, faço aquilo que odeio” (7.15). Em seguida ele diz algo ainda mais revelador: “Portanto, não sou eu quem faz o que é errado, mas o pecado que habita em mim” (7.17). Ou seja, Paulo realiza – muito antes de Freud existir, embora não à sua maneira – que ele não era senhor em sua própria casa. E que sozinho não seria capaz de se livrar da prisão na qual ele mesmo se colocou.

Desse modo, a lição que a psicanálise oferece ao Eu pode ser resumida no seguinte conselho presente no texto de Freud (2010, p. 250): “Volte-se para si, para suas profundezas, e conheça antes a si mesmo; então compreenderá por que tem de ficar doente, e conseguirá talvez não ficar doente”. (Eu penso que a palavra mais importante em toda essa sentença é “talvez”).

E qual será a lição que a espiritualidade pode oferecer ao Eu em prosa psicanalítica? Quero resumir minha resposta à esta pergunta em três insights breves, e em três implicações práticas que eles parecem nos trazer.

1. Somos (quase) todos neuróticos. Ou seja, se você não sofre de outras patologias clássicas apontadas pela psicanálise, como a perversão ou a psicose, logo, você é no mínimo neurótico/a; isto é, você vive a partir de uma cisão entre sua vida consciente e sua vida inconsciente. Assim, precisamos assumir que a raiz de muitos de nossos problemas está na mente. E que podemos, porém, ser neuróticos ao modo de Paulo, isto é, conscientes de nossa rachadura essencial, e de que somos limitados para lidar sozinhos com essa questão. Em suma: precisamos de análise. Quando confundimos pensamentos com realidade, eles nos dominam; quando reconhecemos que “são só pensamentos”, o controle vai trocando aos poucos de mãos.

Assim, aqui vai a Dica n° 1: não tente escapar de ser neurótico; isso é impossível. Mas saiba que é possível, com e em análise, escapar de ser oprimido por ideias que não existem, exceto em sua própria mente ou imaginação.

2. O desejo não é algo ruim em si, mas ruim quando se transforma em demônio. Há, como vimos, uma rachadura aqui, uma cisão entre a vontade e o desejo, entre o que quero fazer e o que sou impulsionado a fazer... Rubem Alves (2018) diz que essa é uma forma elegante de dizer que temos um “demônio” em nós, isto é: bons impulsos, que deixaram de ser meio passando a ser fim e tornando-se, dessa maneira, possessivos.

Assim, aqui vai a Dica n° 2: ouse dar nome aos seus desejos. Até para reconhecer quais estão em acordo com a vontade, e quais viraram demônios. Esse é um segredo que aprendemos com Jesus: os demônios não suportam ouvir o próprio nome. Nomeá-los é tirar a possessão de nosso desejo da mão deles, e abrir caminho para a reconciliação com a vontade.

3. A autoconsciência e o autoconhecimento são bons primeiros passos, mas não se bastam. A lei aqui representa mais que o mandamento; representa o conhecimento e a consciência. Ela revela algo, em termos de conhecimento, que traz consciência e a certeza do que deve ser feito. No entanto, não é capaz de impedir que façamos o oposto daquilo que julgamos ser “bom, perfeito e agradável”. Quer dizer, agora que eu sei o que eu sei sobre mim, o que eu faço com isso? É a pergunta que não quer calar, certo? Como transformar uma consciência sã em uma vida prática sã?

Assim, aqui vai a Dica n° 3: não permita mais que sua consciência o condene. Por quê? Simples: porque “não há mais condenação” (8.1). Ao enviar seu Filho “na semelhança de nossa natureza humana” (8.3), Deus matou dois coelhos com uma só cajadada: santificou de novo a humanidade e, ao mesmo tempo, libertou-a de tentar se salvar por seus próprios esforços. Porque é inútil.

Desse modo, é preciso um ato de rendição (a exemplo dos passos 1 e 2 dos 12 passos dos NA), ao dizer: “Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”, e “Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade”. Ou seja: caminhe dentro do possível e entregue o impossível a Deus (se você é de fé). Se a boa-nova da psicanálise pode ser resumida em: sem o mínimo mergulho no inconsciente, nossa psique está condenada; a boa-nova da qual podemos nos apropriar no Evangelho é: em Cristo Jesus, não há mais condenação. “E, ainda que a consciência nos condene, Deus é maior que nossa consciência e sabe todas as coisas” (1Jo 3.20).

Referências bibliográficas

ALVES, Rubem. Sobre demônios e pecados: das armadilhas da mente, desejos e superstições. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2018.

FREUD, Sigmund. Uma dificuldade da psicanálise. In: Obras completas, vol. 14: história de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 240-251.


 

1 Comments

  1. Heres disse:

    Texto simplesmente fantástico. Obrigado!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *