Nesta reflexão, quero brevemente falar um pouco sobre a noção de João da Cruz, monge carmelita e místico medieval, de ‘noite escura’. E perguntar: O que marca ou define o ‘olhar místico’ e contemplativo, na visão de João? E como podemos nos beneficiar, em termos de maturidade cristã, do caminho através do que ele denominou de noite escura da alma?
A mística e a alma em João da Cruz
Para começar é preciso indagar: o que é um místico? Na tradição judaico-cristã, mística é uma pessoa particularmente e sensivelmente tocada pela presença divina, e que a experimenta no mesmo compasso, intensidade e necessidade inerentes à própria vida e ao respirar. Como Jacó (em Gn 28.10-16), inicialmente ao menos, mística é a pessoa invadida pela presença divina mesmo quando não sabe ou não nota. Como diz Lawrence Kushner (comentando esta passagem):
Deus está presente, ainda que não nitidamente aparente, no palácio do mundo e no mundo da alma. Em primeiro lugar, Ele existe nas chamas, a dor que continuamente agride qualquer ser humano sensível. E quando tomamos consciência de Sua presença, o desespero e o mal dão lugar à luz, à restauração e até à alegria. (Kushner, 1991:77)
Deus está aqui, mas não o vemos. Aqui onde? Paradoxalmente, em tudo o que vemos e tocamos. De modo que a mística é uma espécie de amor pelo todo; uma adesão desapegada à beleza cósmica presente no todo criado e em evolução. Logo, a pergunta não é tanto “onde está Deus”, mas “em quem” (cf. Mt 25). Místico/a é aquele/a que aprendeu a ver Cristo em tudo e em todos, e a olhar apara o mundo (as pessoas) com seus olhos gentis. Místico é o olhar que, mesmo de relance, imperfeitamente, consegue ver a si mesmo e ao próximo como Deus os vê e ama.
Para Richard Rohr (2009:29-30), místico simplesmente significa “aquele/a que se moveu de um mero sistema de crenças ou de pertencimento, para uma verdadeira experiência interior”. Consequentemente, trata-se de uma pessoa que participa e goza dos benefícios inerentes ao projeto reconciliador de Cristo no e com o universo. Por ele/a passam rios de perdão e de amor. Sobretudo porque esta pessoa é tomada pela consciência de sua miséria e de sua carência da graça.
Já Faustino Teixeira, na apresentação dessa tradução de Noite escura (2018), afirma que a percepção que João da Cruz tinha de “mística” (outra palavra fundamental aqui) é a de “um amor pelo todo uma surpreendente adesão à “beleza cósmica”, apresentando, na forma de poesia, uma certa nostalgia ou saudade do mistério. Parafraseando Rohr, mística é a pessoa que aprendeu que a vida não é sobre ela, mas ela é sobre a vida e que, portanto, está aberta ao mistério divino invisível, porém, presente e real em tudo o que vemos e tocamos. Todo cristão, por assim dizer, deveria ser um místico nesse sentido mais amplo de ver/manifestar Cristo a/em tudo e todos. Antes de prosseguir, algumas informações biográficas bem básicas sobre João: um místico e sacerdote espanhol; viveu entre 1542 e 1591; foi fundador, junto com Teresa de Ávila (de quem foi discípulo e recebeu grande influência), da Ordem dos Carmelitas Descalços, que é fruto de uma reforma que ambos empreenderam na Ordem dos Carmelitas – entendendo que os monges deveriam dedicar mais tempo ao silêncio, à contemplação e a um estilo mais “rústico” ou simples de se portar e de se vestir –, não sem muitas dificuldades, perseguições e até em prisão, no caso de João.
Para a mística de João da Cruz – como para os místicos em geral – é muito importante a noção de “alma”. É a dimensão de nosso ser que mais se aproxima de nossa fonte de vida (e, portanto, de Deus), e que não se presta a representar papeis, nem em se ver representada neles; a alma é uma chama de eternidade que há em nós; por isso, ela nunca vive contente com uma vida apenas de aparências. Não há vida humana possível sem disfarces. Não no sentido lato, social, do ser adaptado, do humano bem-sucedido, bem-quisto, bem-visto. Eis a razão pela qual precisamos conversar com e sobre a alma. Porque ela tem uma peculiaridade que inibe esse processo de socialização do ser, que tantas vezes o desumaniza, a saber: a alma não se dá bem com disfarces.
Ela até aceita sua imposição por certo tempo, por falta de escolha mesmo, por instinto de sobrevivência. Mas dizer que vive contente ali, à sombra do disfarce, seria mentira. Mais uma sabotagem à alma. Não aceita, porém, sem gritos inaudíveis à meia-luz; não sem violação de seus direitos; não sem sintomas assaltando o corpo; não sem depressão. Ou, ao menos, não sem que a vida seja impedida de florescer, amadurecer, evoluir. Algumas pessoas são assim, progridem sem evoluir. Pois não há evolução possível - não no sentido estritamente humano - sem uma sincera escuta da alma, nem sem dar a ela seu merecido lugar ao sol.
Bebendo na tradição mística que passa por Jesus, Paulo, o pseudo-Dionísio, o Areopagita (já vou falar mais dele), João da Cruz e Teresa de Ávila, Thomas Merton (2004:4) diz que ao falar de “alma”, ele não trata simplesmente da forma essencial aristotélica, mas se refere “à identidade pessoal madura, o fruto criativo de uma busca autêntica e lúcida, o ‘eu’ que se encontra depois que outros eus parciais e exteriores foram descartados como máscaras”.
Quando Jesus, por exemplo, indaga sobre que vantagem tem o humano ganhar o mundo inteiro e perder a sua própria alma (psuchē) ou “o que daria o ser humano em troca de sua alma” (Mc 8.36-37), é uma pergunta retórica para dizer que nada tem valor maior que a própria vida (na NVT se diz “vida” ao invés de “alma”), quem você é lá no fundo. Ou seja, alma não é quem você quer ser, mas quem você já é sem querer (isto é, naturalmente, sem fazer esforço).
Noite escura da alma
A noite escura também chamada de “noite da purificação” ou simplesmente de “contemplação”, é definida como “uma infusão secreta, pacífica e amorosa de Deus” na alma. Na medida que essa alma consente com esta infusão, “logo é abrasada em espírito de amor”, e purificada de “suas ignorâncias e imperfeições habituais, tanto naturais como espirituais”.
“Noite escura” é o nome que ele dá ao estado da alma diante da infusão de luz divina. Para explicar essa ideia, ele compara-a a situação de alguém olhando diretamente para o sol do meio-dia. A sensação é de que quanto mais nosso olhar é exposto aquela luz, menos nós vemos. E esse é um estado desejável a pessoa contemplativa. Ela abandona o sentido normal de conhecimento e de visão, quando se trata de Deus. Em termos mertonianos, o “ver” da contemplação é, assim, um ver sem ver, um reconhecimento de que nosso olhar “natural” é por demais afetado por outras formas de iluminação – veja o contraste interessante aqui com o iluminismo do século XVIII, e sua obsessão pelo conhecimento apenas pela vida da razão –; e de que, portanto, a única forma de conhecer a Deus é sendo purificado desse desejo e conduzido a uma forma purificada de união.
Podemos então declarar como segue, em que a alma diz: em pobreza, desamparo e desarrimo de todas as minhas apreensões, isto é, em obscuridade do meu entendimento, angústia de minha vontade, e em aflição e agonia quanto à minha memória, permanecendo na obscuridade da pura fé, — que é na verdade noite escura para as mesmas potências naturais — só com a vontade tocada de dor e aflições, cheia de ânsias amorosas por Deus, saí de mim mesma. Saí, quero dizer, do meu baixo modo de entender, de minha fraca maneira de amar, e de meu pobre e escasso modo de gozar de Deus, sem que a sensualidade nem o demônio me tenham podido estorvar. (Cruz, 2014:81).
Dentre os benefícios dessa “noite escura da alma” – que, como se pode ver, é uma noite que envolve dor, aflições e agonia –, podemos destacar as principais:
1. “O principal e primeiro proveito causado na alma por esta seca e escura noite de contemplação é o conhecimento de si mesmo e de sua miséria”. No tempo de prosperidade não chegamos a ver nossa própria miséria e baixeza, diz João. Ou seja, quando tudo vai bem e somos sucesso em tudo menos chance temos de saber quem somos de verdade.
2. Na noite escura “Deus iluminará a alma, dando-lhe a conhecer não somente a própria miséria e vileza, mas também sua grandeza e excelência”. Ou seja, do mesmo processo em que vamos conhecendo melhor a nós mesmos por meio da queda das máscaras e das escamas que nos mantinham enredados em nossa ilusão, também vamos conhecendo a Deus. Por isso, diz ele, “é necessário à alma permanecer neste sepulcro de escura morte, para chegar à ressurreição espiritual que espera”.
3. No caminhar às escuras da noite escura, a alma está segura. A reflexão aqui é que nossa vida, a maior parte do tempo, é sustentada em falsas seguranças, a maioria delas ligadas às nossas conquistas no mundo material. João da Cruz demonstra que é nessas falsas seguranças (e nossos desejos, anseios e raciocínios em torno delas) que nós nos perdemos, cometemos desatinos, vendemos a alma ao Diabo. Na noite escura, porém, nossas faculdades ou capacidades, e a segurança nelas fundadas, são destronadas. Paradoxalmente, João diz que é nesse momento que a alma não mais caminha de modo errante, mas segura.
4. Esse obscurecimento, como salienta Merton (2018:68), “é, portanto, uma iluminação. Deus obscurece a mente apenas a fim de dar maior e mais perfeita luz”. Eis-nos, agora sim, diante do paradoxo da iluminação, em que a luz só pode ser infundida na medida em que deliberadamente escolhemos permanecer na escuridão por certo tempo, admitindo nossa cegueira total ou parcial sobre tais ou quais aspectos da realidade, sem estranhá-la ou dissipá-la com formas artificiais de iluminação. Esse é o paradoxo anunciado por Jesus aos fariseus que interrogavam ao cego de nascença, curado pelo nazareno, e acusavam a Jesus de ser pecador: “Eu vim a este mundo para julgar, para dar visão aos cegos e para fazer que os que veem se tornem cegos”. No que os fariseus o indagaram se ele os estava chamando de “cegos”, então Jesus respondeu: “Se vocês fossem cegos, não seriam culpados (...). Mas a culpa de vocês permanece pois afirmam que podem ver” (Jo 9.39-41, grifos nossos).
5. Para falar em termos atuais, essa é a precisamente uma das premissas do segundo significado de “ser contemporâneo” oferecido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben: poder “ver as trevas” de seu tempo e, contemplando-as, enxergar as suas próprias como em espelho. A poesia de Gabriel O Pensador, “Palavras repetidas” (2005), ilustra essa questão da escuridão do mundo como algo que nos concerne:
A Terra tá soterrada de violência, | De guerra, de sofrimento, de desespero | A gente tá vendo tudo, tá vendo a gente | Tá vendo, no nosso espelho, na nossa frente | Tá vendo, na nossa frente, aberração | Tá vendo, tá sendo visto, querendo ou não | Tá vendo, no fim do túnel, escuridão | Tá vendo no fim do túnel escuridão.
6. A ênfase nas expressões “tá vendo tudo, tá vendo a gente” e “no nosso espelho” é para ressaltar a consciência do poeta de que não apenas as luzes, mas as trevas de nossa época são traços que nos concernem, independente se temos participação direta naquilo ou não. A violência com a qual ele diz que a terra está “soterrada”, por exemplo, e que é parte integrante do cotidiano de brasileiros/as, pode ser algo que não emerge propriamente nos atos de alguém (um/a pacifista, por exemplo), mas que seguramente está soterrado em seu interior, como uma potência. Que esta pessoa, por sua vez, decidiu canalizar de outras formas, não violentas, sem poder, no entanto, afirmar – sem o peso de uma hipocrisia velada – que esta não lhe concerne de modo algum. Essa hipocrisia, contudo, está estampada na face desse mundo polarizado, e que assim se fez – dentre inúmeras razões, que não cabe aqui explorar – precisamente por nossa incapacidade de nos enxergar em nosso próximo, especialmente em suas trevas. É que em raríssimos momentos – exceto, talvez, quando um grande sofrimento bate à porta – as pessoas param para ser testemunhas de sua própria escuridão. Não deve ser de admirar seu estranhamento em relação à escuridão das outras pessoas. Mais duro ainda é quando nas sombras do outro – tais como o ódio incontido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e assim por diante –, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas. Por isso é mais difícil lidar com a própria escuridão. Sobretudo porque dela não há como se livrar; esconder talvez, mas não arrancar, apagar, não a sentir penetrando-nos a alma. Mesmo quando conscientemente a gente anda pelo “vale da sombra da morte”, no fundo a gente anda sozinho. Pessoas têm pavor da escuridão. Ainda bem que Deus não tem.
7. Entretanto, à luz da reflexão proposta por João da Cruz e pela tradição mística cristã, perguntamos: O que vemos ou percebemos, afinal, de nosso tempo ou de nossa realidade? Uma porção ou uma fração? No máximo isso. E não é nossa suposta iluminação – em oposição às trevas do presente – que nos permite atingir tal ou qual nível percepção, mas uma modéstia competente, inerente à toda busca, curiosidade, investigação e contemplação. Assim, concordamos com Agamben que ser contemporâneo é uma questão de coragem, pois isto significa não apenas “manter fixo o olhar no escuro da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar” (Agamben, 2009, p. 65).
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
CRUZ, João da. Noite escura. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GABRIEL O Pensador. Palavras Repetidas. Álbum: Cavaleiro Andante. Rio de Janeiro: Sony BMG, 2005.
KUSHNER, Lawrence. Deus esteve aqui e eu não sabia. A busca de si mesmo, da espiritualidade e do sentido da vida. São Paulo: BestSeller, 1991.
MERTON, Thomas. A oração contemplativa. Campinas, SP: Ecclesiae, 2018.
MERTON, Thomas. A experiência interior: notas sobre contemplação. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MERTON, Thomas. Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROHR, Richard. The Naked Now: Learning to See as the Mystics See. New York: Crossroad, 2009.