1 Quando o SENHOR Deus nos trouxe de volta para Jerusalém, parecia que estávamos sonhando. 2 Como rimos e cantamos de alegria! Então as outras nações disseram: “O SENHOR fez grandes coisas por eles”! 3 De fato, o SENHOR fez grandes coisas por nós, e por isso estamos alegres. 4 Ó SENHOR, faze com que prosperemos de novo, assim como a chuva enche de novo o leito seco dos rios. 5 Que aqueles que semeiam chorando façam a colheita com alegria! 6 Aqueles que saíram chorando, levando a semente para semear, voltarão cantando, cheios de alegria, trazendo nos braços os feixes da colheita. (Sl 126, NTLH)
I. Considerações iniciais
O tema dessa meditação – aos que com lágrimas semeiam – é uma espécie de tributo, não apenas ‘aos que choram’ e, por determinadas razões, especialmente ligadas a infortúnios, necessitam de consolo; aos bem-aventurados/as, que choram e, assim como prometeu Jesus, ‘Deus as consolará’ (cf. Mt 5.4); mas, sobretudo, quero que seja um tributo a pessoas que choram enquanto caminham, andam, vivem e semeiam. É um tributo (isto é, um devido reconhecimento, uma devida honra) aos criadores/as!
Quando lemos apenas o verso 5 da canção acima, podemos ter a impressão de que se trata (apenas) de uma bela metáfora: a de lágrimas que semeiam – e tenho a impressão de que foi assim que li este texto por muito tempo, como uma imagem; bonita de se pensar, do choro como algo que contém não apenas tristeza, mas uma alegria embutida; não apenas a dor advinda do luto pela morte de algo (uma instituição, um ente querido, um relacionamento), mas a dor de parto, que gera, que cria a vida. É bonito pensar, por exemplo, que foram as lágrimas de Jesus, diante do túmulo de seu amigo Lázaro, as sementes que vieram a germinar a ressurreição posterior desse amigo.
Sim, pode ser isso. Mas ouso dizer que é também mais do que isso. O que o salmista esboça para nós aqui não é a imagem de lágrimas que servem como semeadura, mas de lágrimas que escorrem enquanto (ou ao mesmo tempo em que) alguém está semeando algo. Como a mãe que eu abracei esses dias, que chorava muito, não o choro da desconsolação, mas da semeadura, do difícil trabalho de se criar outro ‘ser humaninho’, no caso um menino, nosso filho. Logo identifiquei, naquele olhar e naquele abraço, que as lágrimas da minha esposa não eram lágrimas de desespero, mas fruto do cansaço emocional e dos dissabores da semeadura; do tratamento diário com as demandas inerentes ao ser mãe, além de todos os outros papeis que ela desempenha. Era o choro da criatura no papel de criadora.
II. Considerações sobre o contexto
Não é possível ler bem o salmo 126 sem uma boa mirada no contexto que antecede e permeia o seu canto. Porque ele é um salmo escrito para ser cantado: em peregrinação e como fruto de uma peregrinação, que, aliás, durou mais de meio século. Ele nos transporta ao turbulento século VI a.C., em grande parte do qual o povo de Israel permaneceu exilado na Babilônia, depois que o imperador babilônico, Nabucodonosor, invadiu e destroçou Jerusalém, em 587. Ou seja, esse exílio foi fruto de uma deportação forçada da maior parte dos habitantes dos reinos de Israel, de sua terra natal (Judá e Jerusalém) para uma terra estranha, a Babilônia.
Imagine que significado teve criar naquele contexto: vida, família, filhos, trabalho, em uma terra estranha, e na qual você não tem ideia de quanto tempo irá permanecer. Imagine que significado teve a espiritualidade naquele contexto: servir e amar a um Deus que não impediu que aquele povo fosse desterrado daquela que havia sido a sua “terra prometida”. O que disseram aqueles pais aos seus filhos e filhas, nascidos/as no Exílio, sobre sua história, suas raízes, seus costumes, sua religião, seu Deus?
Imagino que foi uma peregrinação que envolveu luto, tristeza, dor e uma tremenda sensação de não pertencer a nada, a lugar algum, a ninguém (nem a si mesmo, afinal, você está ali como escravo); mas também a sensação de que a vida tem que continuar, de renascimento, do levantar-se do pó, do ter que criar uma nova vida em uma nova terra, que você nunca terá o direito de chamar de sua. Uma sensação nova, estranha, aterradora, mas também, olhando por outro ângulo, fascinante, criadora, movida pela pergunta: “e agora o que será?”, com um desejo profundo de que a resposta literalmente caísse do céu (como foi com o maná – a iguaria vinda diretamente do céu, durante os 40 anos de peregrinação no deserto).
Mas essa resposta – com o tempo esse povo foi percebendo – somente ele mesmo, cada um de seus membros, poderia dar. Porque o exílio, não custa lembrar, foi resultado do tipo de política (bélica, conquistadora, impiedosa) praticada pelos povos naquele tempo, o que incluía certamente o próprio Israel. Ou seja, as lágrimas que rolam enquanto semeamos podem ser fruto de um sofrer injusto, da vítima, ou do mero existir em um corpo com limites, mas também das escolhas (boas ou más) que fazemos enquanto vivemos. Com que facilidade nos esquecemos desse detalhe, não é mesmo? Que, em grande parte, a fonte de nosso sofrimento está justamente no nosso jeitão de levar a vida.
Mas ninguém pode dizer – por exemplo, e para complicar um pouco essa história de escolhas boas e ruins –, que escolher ter filhos é, em si, uma péssima escolha; mas a maternidade e paternidade, nós (pais e mães, em qualquer estágio) sabemos, trazem consigo grandes desafios, da gestação ao parto, do parto à criação, da criação à entrega ao mundo, do lançamento desses foguetes no espaço sideral. Na criação pode haver beleza, genialidade, alegria, satisfação, muito amor envolvido, mas não sem entrega, sem decepção, fracasso ou dor. É o choro da minha mulher, e o sentir de todas as mulheres e homens que imperfeitamente cumprem o que chamamos de ‘mandato cultural’ (Gn 1.28), que não me deixam mentir. Esse, porém, é um choro bendito, não esqueçamos.
Para resumir em uma frase: o riso da criação confunde-se com o choro da criatura, especialmente quando esta é convocada a criar também. Isso que é o mandato cultural, sobre o qual acabo de me referir. É o Criador dizendo: “Vão – meu filho Adão, minha filha Eva – e criem, sejam fecundos inventores do humano”. Mal sabiam ele e ela que, como resultado de sua escolha (ou da escolha que, por preguiça, eles deram de bandeja a uma mera serpente), toda criação a partir de então envolveria pulsão de vida, mas também de morte (para lembrar Freud).
III. Considerações sobre a dor da criação
Assim, até hoje, na criação do que quer que seja – um filho, uma peça, uma música, um sermão, um livro, uma marca, um produto, etc. – há alegria e há tristeza, às vezes separadas, às vezes reunidas num só momento. Como parece ter sido o caso desse povo, que agora fazia o caminho de volta para a terra que, na infância ou na juventude, eles tinham o costume de chamar de sua. Como terá sido, então, para eles/as esse retorno-saída? Porque uma parte nem sequer retornou; morreu ali mesmo no exílio. E enquanto para uma parte desse remanescente, era um retorno; aos mais jovens, tratava-se de uma saída para a terra sobre a qual eles tanto ouviram falar, mas não conheciam de fato e de verdade. Como tornar aquela terra um lugar familiar também para esses filhos/as do exílio?
Quer dizer, sem dúvida que há muita surpresa, muita satisfação e muita alegria nesse retorno. Os dois primeiros versos do salmo, na versão A Mensagem, traduzem maravilhosamente esse sentimento: Parecia um sonho, bom demais para ser verdade: o Eterno trouxe de volta os exilados de Sião! Nós rimos e cantamos, sem acreditar em tamanha felicidade. (v. 1-2)
É, para dar um exemplo bem rude, como ser contemplado em um consórcio após o término da primeira prestação: recebemos o produto dos sonhos, agora falta pagar as 380 parcelas que restam para que ele seja nosso. No caso de Israel: é bom estar de volta (ou, é bom apresentar a vocês, filhos nascidos no exílio, sua antiga-nova terra); mas, agora que estamos de volta, resta a tarefa de construir tudo de novo do zero. Nem casa, nem trabalho, nem templo. Temos a terra de volta, mas sem nada nela.
É nesse contexto que devemos inserir a oração que se encontra no meio do salmo: ”Ó SENHOR, faze com que prosperemos de novo, assim como a chuva enche de novo o leito seco dos rios“ (v. 4). Ou, outra vez na versão A Mensagem: “E agora, ó Eterno, age de novo a nosso favor, enviando chuva sobre nossa vida assolada pela seca”. Ou, é como a mãe que ora: “O Senhor me deu esta criança – louvado seja Teu Nome! Agora, me dê sabedoria (força não, senão eu sou capaz de esganar a coitada!), para criar esse ser diferente de mim, porque tem hora que a minha vontade é de jogar a toalha!”.
E isso vale para toda semeadura, para toda forma de criação, de trabalho, para toda entrega, para todo exercício de dom: há exultação, mas há também lamento; há prazer, mas nunca sem suor. Há muita vida, mas não sem que tenhamos de aprender a morrer algumas mortes.
Rubem Alves conta uma parábola da natureza em seu livro ‘Ostra feliz não faz pérola’ (2008). Num fundo do mar haviam colônias de ostras felizes, que se sabiam como tais porquê do interior de suas conchas brotava uma melodia, uma música aquática, quase como se fosse um canto gregoriano cantado a uma só voz. No meio delas, porém, havia uma ostra solitária que fazia seu canto em solo. As demais ostras riam-se dela, pois achavam que ela era fraca, não conseguia ‘sair da depressão’ e parar de cantar seu canto deprimido. No caso da pequena ostra, contudo, sua dor não se origina de uma depressão, mas de um grão de areia, que lhe provocava dor na carne. Mas ela descobriu que era possível se livrar da dor: bastava envolver aquele grão com uma substância lisa, brilhante e redonda. Então, enquanto doía, e enquanto cantava sua dor, a pequena ostra trabalhava, não deixava de caminhar, e assim produzia sua pérola. É daí que Rubem extrai a sua ideia central:
Como a ostra foi capaz de da dor extrair sua pérola, seres humanos podem encontrar beleza em meio a tragédia. Porque, diz ele: “A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas” (p. 12)... Os que produzem arte, os que dão sentido à vida.
Percebe como a moral e as lições que precisamos extrair daqui estão embutidas na própria história? Percebe como não há nada de absolutamente errado ou fatal em às vezes estar errado, em ser desajustado, em não ter tudo junto, em não ser “bem resolvida”? Aí, Rubem diz que começou a pensar em todos os homens que tinha em seu coração. “Foram todos desajustados e infelizes”, concluiu ele. Alguns cometeram suicídio; outros morreram de overdose; outros enlouqueceram. E ele belamente e honestamente declara:
Então, as pessoas que amo não tinham saúde mental. Não eram ajustadas. Então, por que as amo? Pelas coisas que elas produziram. As pessoas ajustadas são indispensáveis para fazer a máquina funcionar. Mas só as desajustadas pensam outros mundos. A criatividade vem do desajustamento. Imagine que a nossa sociedade é louca. As evidências dizem que sim. Estar ajustado a essa sociedade é estar ajustado à sua loucura. Então, há um tipo de ‘saúde mental’ que é uma manifestação de loucura. Mas aqueles que são lúcidos, que percebem a loucura da sociedade e sofrem com ela, desajustados, são os que verdadeiramente têm saúde mental. (p. 178-179)
IV. Considerações finais
Quando paro para pensar nos meus heróis e minhas heroínas, reparo que eles/as, assim como os que Rubem Alves citou em seu livro – Nietzsche, Van Gogh, Walter Benjamin ou Fernando Pessoa –, percebo que eles/as carregam também esse dom e esse fardo do desajustamento. Não foram ou são o que nossa sociedade costuma chamar de “pessoas normais”, vivendo em situações favoráveis em um mundo ideal. Mas gente de carne e osso que, diante de diversas e adversas condições de vida, diante de erros e acertos, vitórias e fracassos, foram capazes de criar e recriar vida, e, finalmente, de ressuscitar pelo poder da graça depois de dias de quase apodrecimento na tumba. Como o nosso Senhor Jesus.
Assim, se a criatividade vem do desajustamento, como colocou Rubem, então podemos entoar esse tributo de esperança a todas as pessoas que nesse momento choram enquanto semeiam; que podem até não ser (nem se ver como) tão desajustadas assim, como foram Jesus, Nietzsche, Van Gogh ou o próprio Rubem Alves; mas são pessoas que sabem precisar continuar vivendo, trabalhando, criando e perseguindo o retorno à “terra prometida”, enquanto estão tentando ajustar as coisas que se encontram desajustadas.
Você se sente, mais ou menos, de algum modo representado/a nessa pintura ou descrição? Talvez não se sinta, e tudo bem, a gente não tem que ser e nem sentir tudo. Mas, caso se sinta, então a boa notícia que esse salmo traz a você e a mim, nos últimos versos, é: Bem-aventurados/as também são vocês, meus irmãos e irmãs. Porque agora vocês fazem parte do grupo seleto e esquisito de pessoas: desajustadas, sim; imperfeitas, sim; extremamente carentes da graça divina, sim; mas que, precisamente por ser quem são, participarão, mais cedo ou mais tarde, segundo o salmo 126, da colheita da alegria. Se esse é o seu caso – e eu não me isento aqui de confessar que é o meu – então, vamos juntos nessa.