Em meados do século passado, Paul Tillich publicou A coragem de ser (1972), que ainda hoje é considerada por muitos (e por mim mesmo) sua obra-prima. Como outras de suas obras, esse livro foi oriundo de conferências que o autor deu na Universidade de Yale dois anos antes. Seu objetivo na obra foi o de analisar a fé a partir da coragem – no sentido ontológico, como uma qualidade do “ser” de alguém. Embutida na reflexão sobre o ser, está a questão do “não-ser”: aquilo que eu sou e aquilo que eu não-sou são duas realidades que formam a minha existência.
Nisso consiste a principal fonte de sua ansiedade: a experiência de ser tendo a “consciência existencial do não ser”. Em outras palavras, trata-se da consciência de que meu ser tem limites, começando por limites internos (físicos, psíquicos, emocionais, etc.), passando pelos limites externos (os de “seu mundo”, de sua situação social, de sua cultura), até chegar aos limites existenciais (a finitude como o seu limite-mor).
A ansiedade básica do ser humano nasce então da constatação sobre aquilo que ele não é: não-tão-lindo, não-tão-santo, não-tão-inteligente, não-tão-perfeito. Quando essa constatação se confirma como certeza, a ansiedade pode se transformar em desespero (“sem esperança”, a falta de sentido se torna então vitoriosa). É compreensível, então, que “toda a vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero” (p. 43). E, na maior parte do tempo, o ser humano consegue. A questão é: como?
A resposta de Tillich é: evitando o ser! Ou seja: evitando encarar a si mesmo, refugiando-se na neurose, que ele define como “o meio de evitar o não-ser evitando o ser”. Em seu estado neurótico, a pessoa não deixa de funcionar, não deixa de seu autoafirmar, mas esta autoafirmação é feita a partir de um “eu reduzido”, isto é, um eu que é menor (ou maior) do que é em seu potencial e “essência”. O antídoto para o desespero passa a ser, assim, refugiar-se em uma pessoa inventada e irreal.
Pense numa fotografia, podendo ser um retrato de você, um autorretrato ou (para ser mais atual) uma selfie. O que ela revela senão uma imagem de você capturada em um momento ou instante, que já passou, assim como aquele você da foto? É possível tentar reproduzir o olhar ou a postura da imagem, mas nunca será igual na realidade ou em outro retrato. Há uma dupla mensagem aqui: nem você consegue mais representar a pessoa capturada na foto, nem a foto reflete quem você é, para além de poses, sorrisos, “caras e bocas”.
Assim é também com o ego, que é uma imagem de você capturada pela mente (o que você pensa que é), mas também emoldurada em diferentes formas ou papéis sociais. O ego não se revela exatamente no fato de alguém ser professor ou médico, pai ou mãe, artista plástico ou youtuber, empregada doméstica ou influencer digital, corintiano ou palmeirense. Revela-se, sim, na submissão de sua identidade a esses papéis que “exercemos no teatro da vida” (Maria Salete).
E, veja, isso nada tem a ver com o desejo de e o impulso para ser melhor em todos os sentidos. Esse impulso e desejo se tornam destrutivos, como nos lembra Tillich, caso se queira evitar a todo custo o risco de insegurança, imperfeição, parcialidade e incerteza que rondam nossa condição, além da própria realidade de quem somos e de quem não-somos.
Dessa forma, Tillich afirma que a “boa vida”, a vida sã e humanizada, é a vida corajosa, isto é, a vida que pode ser afirmada em sua integridade, a despeito de suas ambiguidades, imperfeições e da própria morte que a cerca (p. 22).
A coragem de ser de Tillich tem inúmeras outras implicações para a fé, como, por exemplo, a coragem de “aceitar-se como sendo aceito, a despeito de ser inaceitável” (p. 128) – o que teologicamente pode ser descrito como graça. A eficácia da graça de Deus na vida humana depende da aceitação de nossa ineficácia e de nossa insuficiência.
Minha preocupação aqui reside, porém, em que implicações essa coragem de ser traz para a reflexão sobre os caminhos e descaminhos do saber. E, nesse sentido, as palavras de Paulo em 1 Co 13, são indicativas de um caminho: o caminho da coragem do ser que se reconhece como uma parte, e que, ademais, sabe que o seu conhecimento é apenas parcial. Isso soa como uma afirmação óbvia, e isso se trata de uma afirmação óbvia, mas que muitos de nós têm obviamente a ignorado.
Na prática funciona assim: sabemos que nosso saber é em parte, mas agimos com o outro como se apenas o dele ou dela fossem. Na teologia, por exemplo, sabemos, por total inferência e afirmação de fé, que “Deus é grande”, que “Deus é eterno”, mas agirmos muitas vezes como se “o que pensamos” sobre Ele também fosse (incluindo tais afirmações).
Assumir a parcialidade e o estado inacabado desse conhecimento, porém, deve sempre nos lembrar de que ele nunca é grande coisa. O silogismo “falo sobre Deus, logo sou grande coisa, e esse saber também é” é um dos mais fatais para a teologia e para a espiritualidade cristãs. Faz do lugar teológico um lugar de usurpação e, como tal, um lugar idolátrico, pecaminoso.
Como vimos na primeira aula, a comunidade de Corinto vivia essa tentação por ser formada também por uma elite intelectual, muito orgulhosa de seu conhecimento. A poesia de 1Coríntios 13 vem para quebrar qualquer auto-ilusão a respeito desse lugar.
1. Primeiro, porque afirma que o amor prevalece sobre o saber. Alguém pode saber falar a língua dos homens e dos anjos e entender todos os segredos do universo, mas sem amor tudo isso é reduzido a zero (v. 1-2).
2. Segundo, porque enfatiza que o saber é sempre em parte (v. 8) – mesmo quando temperado com amor, como já enfatizei anteriormente nessa série.
3. Terceiro, porque nos recorda sobre a finitude do saber: um dia, como tudo, ele também será aniquilado (v. 9).
Ou seja, nada desse conhecimento que hoje acumulamos e ostentamos com orgulho irá permanecer. Nada! Profecias? Desaparecerão. Línguas? Cessarão. Ciência? Passará. Teologias? Igualmente.
Essa é uma mensagem de esperança e libertação. É um grande conforto poder deitar a cabeça no travesseiro ao final de um longo dia sem esse peso tenebroso da autoafirmação (do que eu posso ser-saber) destituída de aceitação (dos limites desse ser-saber).
O saber é uma benção enorme, mas o não-saber, nesse contexto, é uma benção ainda maior, verdadeiramente libertadora! Porque não apenas damos espaço para o outro, que também é e sabe parcialmente, como finalmente deixamos que Deus desempenhe o papel de Deus, nos relegando o maravilhoso lugar de humanos. Então, a coragem de ser quem se é e como “uma parte”, de Tillich, une-se com a liberdade e “a alegria de não ser Deus”, de Tomás Halík no livro A noite do confessor.
É um alívio, diz ele, não ter de substituir Deus como amador, ou (diria eu) como um teólogo aspirante a Deus. Assim, (finalizo esse tópico com suas palavras):
Quando temos a coragem de largar as rédeas que, de qualquer modo, não controlam nada, mas que, não obstante, nos arrastam continuamente – através de nossas ansiedades e arrogância, através de nossa grandiosidade, loucura e vaidade, ridículas, embora perigosas –, quando desistimos de nosso posto fictício de comandantes do universo, sentimos um alívio enorme. A humildade e a verdade curam e libertam (p. 109).